sexta-feira, 22 de abril de 2011
a vida noturna das cobaias - 1ª parte
“― Brad costuma seguir uma minuciosa rotina no chuveiro: bate sete vezes no lado direito da cabeça, passa xampu na franja, bate mais sete vezes, desta vez do lado esquerdo, passa creme rinse e bate outras sete vezes. Alterna o lado das batidas para que nenhuma série fique ‘desequilibrada’; repete isto na parte de cima da cabeça e na parte de trás, depois passa para o rosto e o pescoço, e só então, passa para o resto do corpo...” ― a aula da pesquisadora Rivka Rappaport acontecia no salão nobre da Biblioteca Nacional de Medicina do Instituto Nacional de Saúde em Bethesda, Maryland, a alguns metros da avenida Wisconsin e a uns bons quinze minutos do distrito federal, Washington DC.
Havia no ar a expectativa do laboratório chefiado pela Dra. Rappoport ganhar um apoio financeiro substancioso com a campanha nacional de conscientização sobre o transtorno obsessivo-compulsivo. “―... seus rituais envolvem não só a ordem que acabei de lhes descrever, mas também a forma correta de jogar a água e, uma vez terminado o banho, finaliza com a maneira correta de pendurar a toalha. Se ele, no decorrer do circuito completo do banho, inverter alguma das fases ou estiver em dúvida quanto a ter seguido uma alternância estrita das batidas nos lados da cabeça, ele tem de recomeçar tudo do princípio”.
“― Soltos ou em cativeiro, normalmente, os ratos passam um terço da vida acordada se arrumando. Arrumar o pêlo lhes permite regular a temperatura, devido à evaporação da saliva, bem como influencia o comportamento sexual, pela ativação do estro nas fêmeas via os diferentes odores da saliva do macho. Mas o ato de se arrumar também ocorre durante a frustração e o conflito; nessas ocasiões, os ratos se arrumam mais ainda... de toda forma, eles exibem um padrão fixo de se arrumar, tão complicado quanto o de qualquer um dos nossos pacientes.”
A lavagem dos ratos é sempre da cabeça para a cauda: primeiro o focinho é higienizado pelas patas dianteiras umedecidas, em seguida é lambido o resto do corpo, coçar e farejar o rabo encerram o ritual. Inúmeros agentes químicos e lesões cerebrais despertam o programa de arrumação corporal; se retirarmos da pituitária o hormônio adrenocorticotrópico e o injetarmos no cérebro da cobaia, o bicho começará a se lavar exatamente como faz em estado natural. Há também uma série de drogas que fazem com que o rato pare de se lavar. E era uma destas promissoras moléculas que a equipe de Rivka tinha acabado de sintetizar; ela precisava convencer os decanos do poderoso N.I.H. a investir numa pesquisa com cheiro de Nobel.
“― A questão é saber se alguns animais se arrumam demais devido ao stress da vida em cativeiro...” ― ela já estava acostumada a ver a cena ao acender as luzes pela manhã no laboratório de genética animal: entre as milhares de gaiolas, verificava-se que em algumas todos os camundongos amanheciam com os pêlos e os bigodes completamente cortados.
Todos, menos um. “― O chamado ‘rato-barbeiro’ é noturno, em geral do sexo masculino e nunca há mais de um por gaiola...” ― nem ela nem ninguém podia jurar o que quer que fosse sobre a interpretação correta daquele tipo de comportamento, mas lhe fornecera um modelo animal para testar uma linha de medicações que iriam revolucionar o tratamento de pessoas sofrendo de tiques, obsessões, superstições e compulsões que iam desde verificações e lavagens estereotipadas até manias esquisitas como arrancar todos os pêlos do corpo.
Na platéia, o executivo de uma grande empresa farmacêutica européia ouve com atenção cada palavra da palestra; Oswaldo Canhenho Jr vai convidar a cientista americana para uma aula magna no Colégio Latinoamericano de Neurociências a ser realizado no seu país de origem dali a seis meses. Ele já sabe que o pleito da Dra. Rappoport não receberá verbas federais. Só espera que a fala dela termine para se apresentar pessoalmente, encontro que mudará dramaticamente a vida de ambos.
“― ...em toda a hierarquia zoológica existem exemplos de padrões inatos de limpeza do ninho ou toca, como a retirada de fezes, enterro de dejetos, defecar longe de casa... hábitos tão básicos para a sobrevivência que fazem parte do repertório de quase todos os mamíferos” ― o que a pesquisadora não consegue explicar a ninguém, nem à sua terapeuta, é o desalento que o seu trabalho vem lhe provocando ultimamente. Algo dentro de Rivka Rappoport começou a suspeitar que nunca vai ter um trabalho laureado com o prêmio máximo da ciência; no momento, porém, tudo que pode acessar conscientemente dos seus próprios sentimentos é que começou a sentir algo pelos ratos do laboratório.
É difícil dizer alguma coisa boa a respeito dos ratos. Eles são sujos. Eles transmitem doenças, eles guincham, eles se multiplicam sem parar, têm costas peludas e barrigas oleosas. Eles fogem e se esgueiram o tempo todo, mas reagem quando acuados e partem para o tudo ou nada. Na semana passada ela surpreendera uma reação num roedor prestes a receber uma dose letal de medicação. Ele a olhou dentro dos olhos. Primeiro sentiu pena, depois desprezo, então, viu-se tomada por uma raiva cega que a levou a fugir imediatamente antes que o matasse.
O que a fez suspeitar que talvez existisse alguma coisa naquela criatura ― a mesquinharia desenfreada? O egoísmo congênito? O apetite voraz?, que lhe cai com tamanha naturalidade ― que tão cruelmente a lembrou dela mesma.
[Insatisfeita com a narração, a Dra. Rivka Rappoport exigiu conversar com O Autor acerca dos rumos desta história]
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