quarta-feira, 12 de outubro de 2011

o pintinho amarelinho


            Pois é. Já tive a cor amarelinha, a silhueta roliça e felpuda, o ar carente de bicho de pelúcia que conquista instantaneamente o coração de adultos e crianças. Imagino às vezes que ainda sou uma daquelas bolinhas de vida piante ― como as que vocês ganham em quermesses ou compram nas feiras ―, parecendo uma gema de ovo com pés, asas, olhos e bico.

            Houve um tempo em que eu era um pintinho amarelinho e a minha vida era simples e feliz andando em volta da mamãe com os meus irmãos e irmãs. Naquela época dormíamos todos bem juntos e quentinhos, exaustos de tanto brincar e empanturrados da ração que os ajudantes de Deus jogavam do céu. Sinto muitas saudades da infância, quando havia dias e noites.

            Tá certo, nem tudo foi flores, cansei de tomar na cacunda dos irmãos maiores quando me atirava sobre o farelo de milho que aparecia magicamente no chão. Havia uma ordem nas bicadas, e ela tinha de ser respeitada; os mais velhos nunca esqueciam de me lembrar disso. Apesar, e talvez por causa, das brigas, a hierarquia de então me parecia não só natural como a única possível. Crescer é que tem sido traumático.

            Mas isso foi há muito tempo. Ou não, é difícil lhes dizer exatamente, tenho a memória muito curta, além disso, o meu cérebro de galinha não permite raciocínios longos sem que os meus escassos miolos comecem a doer horrivelmente. Ainda assim, enquanto me tornava um robusto frango de crista vermelha e penas brancas, aprendi algumas coisas por observação. Por exemplo, recolhi sérios indícios de que a Indesejada vai me pegar antes dos vinte dias de idade.

            Os instintos me mantêm sempre alerta para o perigo ancestral que vem de cima na forma de duas grandes asas, porém, o que realmente sucedeu foi que, um belo dia, os alimentadores ― que supus serem anjos! ― entraram no nosso cercado, cataram a mim e aos meus irmãos pelo pescoço, e depois nos jogaram em um caixote escuro cheio de outros jovens aterrorizados berrando por suas mães. Terminava ali a parte feliz das nossas vidas.

            Girando o pescoço, para onde quer que olhe neste galpão superaquecido em que a luz artificial nunca se apaga, vejo a mesma cena estendida ao infinito: milhares e milhares de gaiolas enfileiradas. Em cada cela individual há serragem, um bebedouro, um cocho e uma barra de alumínio a toda a volta da gaiola que impede os desesperados de se machucar contra as grades. Entre uma fileira e outra, no teto, ficam as nórias, trilhos por onde somos transportados suspensos pelas patas.

            Só se entra ou sai daqui de ponta cabeça.

            Não há muita distração neste lugar. Um zumbido, que a princípio não pareceu tão incômodo, tem deixado os meus nervos exaustos; isto, somado à falta de sono e aos hormônios da comida, ofertada constantemente, me faz viver em um estado misto de cansaço, superexcitação e bulimia. Venho sentindo muita necessidade de sexo, o que na minha situação é um problema, pois o órgão sexual fica embutido; como tive as asas cortadas e o bico serrado logo que cheguei, não dá nem para dar uma catucada no bichinho. Como queria ser um marreco nessa hora!

            Um colega da gaiola ao lado, que dizia ter sido levado por engano a um abatedouro quando criança, contou-me sobre as coisas horríveis que lá se passam. Eram histórias tremendas sobre cabeças mergulhadas na água salgada, correntes elétricas paralisantes, sangrias em vivos, eviscerações e medonhas depenadeiras automáticas. Ainda bem que sumiram com ele, aquilo me fazia mal. Dois episódios posteriores, no entanto, acabaram de vez com as minhas convicções.

            Hoje me encontro entregue à amargura: deixei de acreditar que tudo que estou passando faz sentido, que um dia o castigo acaba e estou livre para andar por um amplo terreiro, onde frangas de ancas largas me facilitam a montada e posso finalmente afogar o ganso. Deus se mantém distante deste mundo de pesadelo, e aqueles a quem julgava servos dos Seus desígnios bondosos, vejo agora como demônios cuja língua articulada e violência sem limites me dão calafrios.

            Os galináceos enxergamos muito bem (disso depende a sobrevivência), o que nos dá acesso até aos minúsculos dramas da vida dos insetos. Faz muito tempo, quiçá uns bons três dias, acompanhei de perto as desventuras de uma formiga-macho; chegada a época do acasalamento, e sem acesso às fêmeas, violentou uma operária, cujos órgãos atrofiados impedem a cópula, provocando-lhe a morte em meio a dores atrozes. O alarido provocado pelos meus colegas, atiçando o agressor com furiosos cacarejos, serviu-me de lição sobre a verdadeira natureza das aves.

            Recentemente ocorreu uma alteração na rotina férrea desta penitenciária, talvez um feriado religioso; o fato é que havia menos tratadores e estes apresentavam um comportamento selvagem, distante da indiferença habitual. Os chefes não estavam. O churrasco fedorento que prepararam me embrulhou o estômago, beberam de uma água com cheiro acre e se puseram a rir e a cantar. A certa altura, abriram uma gaiola e arrancaram de lá um frangote recém-chegado, que passaram a torturar por diversão.

            O coitado foi apanhado pelo pescoço e forçado a beber o líquido malcheiroso, depois soltaram a pobre criatura completamente grogue no meio da roda. Chutavam-no de lá para cá a cada vez que se aproximava de um deles. Assisti horrorizado um dos demônios, o que tinha os olhos mais injetados, pegar um cutelo e decepar a cabeça do rapaz. O corpo dele ainda cambaleou alguns passos antes de cair no chão remexendo as patas.

            As gargalhadas daqueles sujeitos não me saem mais da cabeça. Diante disto, o que posso esperar? Mas pensemos pelo lado bom, eventual/raro leitor, você poderá saborear a minha história e a minha carne macia e anabolizada até o fim: desfiada na sopa, assada ou frita, quem sabe até mesmo poderá cravar seus bem tratados dentes no meu coração na ponta de um espetinho. Não guardo ressentimentos, não se pode culpar ninguém por ser o que é; afinal, o problema da vida é o mesmo para todos: sempre haverá por último um enigma impossível de resolver.

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