Às
vezes tenho a nítida sensação de que não chego realmente a conversar com a
minha mãe, é curioso, não consigo lembrar sobre o que eu e ela falamos o dia todo, todos os dias ― e é certo que alguma
coisa devemos falar, nem que seja sobre o que está faltando na despensa ―;
bem, de qualquer maneira, não deixamos de ser uma família que cultiva uma grande
arte: a arte de desconversar. Desconversamos sobre tudo e qualquer coisa, principalmente
acerca do que não se pode calar. Não vou aqui negar que careça de argumentos
(ela os tem, e como!), nem que lhe falte um certo humor farsante; aliás, para
ser inteiramente justa neste relato, devo acrescentar uma anedota ilustrativa das
pequenas diversões que a personalidade peculiar de mamãe proporciona à nossa
rotina.
Até
porque, venho concluindo ultimamente, a minha família não é muito diferente das
outras, só a coisa em casa é um tantico mais arreganhada. Há uma questão a
respeito da qual parei de alimentar fantasias: aqui ou alhures, na casa ou na
rua, é a mesma chanchada que rege homens e mulheres; o que chama a atenção é
que ainda sejam tão poucos os que dão a bofetada no seio da massa que oferece a
outra face. Os ‘maus’ agem, e os ‘bons’ não reagem ― a não ser quando se tornam
maus. Talvez seja mais prático viver por procuração. E assim caminha a humanidade, Urbi et Orbi.
Era
uma daquelas tardes abafadas de um sábado caduco, estávamos na varanda de casa
apreciando o movimento da rua ― que não é de grande interesse, porque os
moradores deste bairro parecem se deslocar unicamente dentro de carros
indevassáveis para quem está de fora, e suas vidas exalam asseio, sucesso e
adequação. Entre uma cusparada e outra dos impropérios costumeiros que a minha genitora
dedica aos exemplares da sociedade disponíveis, sem que nos déssemos conta,
parou uma mulher no portão de casa. Usava roupas simples mas elegantes, tinha
presença, a idade era indefinível a um exame sumário, digamos que estaria entre
eu e a minha mãe. Nunca a tinha visto nem mais gorda, nem mais magra.
―
Aqui é o número 115?
―
Está aí do lado do portão, se recuar um pouco e souber ler, vai descobrir; e se
aproveitar pra seguir seu caminho, melhor ainda ― a mãe sabe como poucos deixar
alguém desconfortável no mais alto grau; sem ser uma faladora habitual, possui uma
habilidade natural para a retórica de guerrilha. Além disso, tem seus momentos.
―
É que... precisava falar com a senhora...
―
Moça, religião já tenho, e compras eu mesma faço na loja.
―
Não, não é isso... é que, hmm, a conversa tem de ser mesmo particular.
―
Particular mesmo, aqui, só a
propriedade. Se não puder explicar, daí, o que quer, já lhe disse: a calçada é
excelente para a senhora continuar seu passeio.
―
A senhora não me conhece, mas eu sou da sua família... quer dizer, distante...
veja, o assunto é muito delicado para lhe falar assim, da rua...
―
Ah bom, mas por que não falou isso antes? Se é da família, então a coisa muda
de figura... mas é que, sabe o quê?, gente velha desconfia de tudo mesmo, veja só: estava ainda agorinha
preocupada com uma desconhecida mesmo
querendo entrar na minha casa... tu tá me achando com cara de panhonha, é menina?
― Nossa, a
senhora está levando tudo pro outro lado... Pelo amor que tem a Deus, me
escute, eu preciso muito da sua ajuda...
― Hum, agora
você conseguiu, começou a me fazer acreditar em você, família é sempre essa
água: quando aparece sem avisar, com certeza é pra pedir alguma coisa! Olhe em
volta ― e apontava as paredes de reboco descascado, a nespereira xexelenta, a
balaustrada e o jardinzinho da frente tomados por capim-gordura ―, não sobrou
muito, né?
― Só espero
que tenha sobrado um pouco de boa vontade...
― Que é que
você quer dizer?
― ...(suspiro)
a Maria Eduarda... minha filha, precisa de um transplante... de medula, virei
mundos e fundos, paguei investigador, e vim lhe procurar, não pra amolar, nem
para ter direito a nada...
― Pera, pera,
pera aí, direito? Direito a quê, tenha a bondade de me explicar...
― A senhora
não vai me deixar entrar? Por favor, falo aí onde está, assim, na calçada,
não... Buf, acredito que... que uma de vocês duas tem grande chance de ser a doadora...
― Certo então,
porque a sua tia torta foi casada com o contraparente da família da terceira
sogra do meu avô, você acha que tenho que dar um pedaço de mim... para a sua
filha?
― A sua neta! Minha filha é sua neta, por caridade, eu não queria lhe contar dessa maneira: você,
a senhora, é a minha mãe de sangue... um rapaz, há muito tempo, Antônio Nunes
se chamava; foi engravidar adolescente, e ainda naquela época... Nunca quis lhe
conhecer, não tive essa curiosidade, não sei, estava em paz até minha filha
adoecer. Estou sendo transparente: você não me abortou, e lhe agradeço; você me
deu, não a culpo, fui bem criada; sei que para a senhora sou uma completa
estranha vinda do nada, mas agora preciso
tanto, lhe suplico... é a minha menina!
―...
― Desculpe...
não era minha intenção...
― Você fique
aqui ― disse para mim, e então, começou com a outra ― Você aí, isso, vá entrando
no portãozinho... me espere bem aí.
Antes que eu
piscasse, aconteceu: ela tirou toda a roupa e abalou-se na direção da mulher,
que, a esta altura, se detivera estupidificada no meio do caminho. Uma
máscara disforme tomava-lhe o rosto, que mal podia ser reconhecido sob a
cabeleira de loba e os requebrados selvagens ― uma senhora que usava andador para ir à missa! A cantilena gutural que lhe saía das entranhas, inarticulada e
melódica como a das carpideiras mouras, nem era o mais impressionante, fiquei
abismada com o tamanho que ela havia
adquirido: minha mãe ficara enorme, como se fosse uma daquelas hipopótamas do
Fantasia; e esfregava-se na outra, dizia-lhe coisas no ouvido, roçava nela as
partes nuas e as tetas pendentes executando desajeitadamente os passos da sua
dança lasciva.
A moça fugiu
dali correndo e não voltou mais.
Pena, podia
ter vindo me ajudar a cuidar da velha; este meu ramerrão é muito igual,
dividindo com mais alguém, quem sabe, me sobraria algum tempo para o lazer. Dar
uma saidinha é bom de vez em quando.
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