Dramatis personae
Dara
Camila
Moradora
1 (idosa)
Morador
2 (menino)
Amigo
de Camila
Amiga
de Camila
Cena 1
(Noite. Dara e Camila chegam de
viagem carregadas de malas, sacolas e valises. Hall de entrada de um prédio antigo
de classe média cuja decoração inclui: duas savonarolas de jacarandá com
encosto de couro, uma mesa baixa de laca escura sobre a qual se encontra uma
jarra cilíndrica de vidro preenchida por três copos-de-leite e, na parede, uma
pintura a óleo com moldura dourada representando uma cena de caça. Ao lado dos
móveis, duas portas de elevador com postigos de latão, abaixo destes, placas
que indicam “Social” e “Serviço”. Uma senhora de idade aguarda na frente do
elevador social.)
Moradora 1 ― Boa noite.
Camila ― Boa noite.
Moradora 1 ― Você não é a neta do
‘seu’ Martos?
Camila ― Eu mesma. Puxa, que boa
memória a senhora tem, estive fora muito tempo... nem achei que alguém aqui me
reconheceria.
Moradora 1 ― Vai morar no
apartamento dele? Depois que ele faleceu ficou vazio tantos anos que até achei
que a família tinha esquecido.
Camila ― Bem, na verdade houve
problemas no... no inventário do meu avô, mas agora tá tudo certo. Vamos ser
vizinhas, ao que parece.
Moradora 1 ― A sua... amiga,
também? Vão morar juntas, né?, veja: não é da minha conta, só pergunto porque
você não deve estar precisando dividir as despesas, afinal, a menina é de uma
família tão boa...
Camila ― É, não, pra ser mais
exata, nós estamos juntas há bem um
tempo, se a senhora me entende... Ah, desculpe, esqueci de apresentá-las...
esta é a Dara.
Moradora 1 ― Muito prazer.
Dara ― Prazer.
(Não se cumprimentam. Apenas
trocam ligeiros acenos de cabeça.)
Camila ― Tá demorando esse
elevador, não? Acho que vamos pelo de serviço.
Moradora 1 ― Ih, esse é o pior:
estamos no horário de saída das empregadas, aí, já viu, elas param no andar
umas das outras de conversa, saem juntas pra pegar a condução... No social, são
as crianças subindo e descendo, um horror!
Camila ― Bom, chegou o de
serviço. A senhora vem conosco?
(Dara empurra as bagagens para o
elevador e entra.)
Moradora 1 ― Obrigada. Vou
aguardar o outro. Espere um pouco, a sua amiga... bem diferente ela, fala com
sotaque, é estrangeira?
Camila ― Sim... de certo modo,
claro, ela veio de fora...
Moradora 1 ― Não leve a mal que
eu diga, mas... é melhor levá-la num bom médico, a cor dela tá meio esquisita,
sabe?
Cena 2
(Interior de apartamento, há uma
mesa de jantar com algumas cadeiras e um sofá; o restante dos móveis está coberto
por lençóis brancos. Vêem-se duas portas, uma dá acesso ao quarto, a outra, a
uma cozinha americana. As bagagens estão acumuladas num canto, Camila está
sentada no sofá e Dara sentada à mesa. Camila procura algo numa nécessaire.)
Dara ― Que coisa!
Camila ― Que coisa, o quê?
Dara ― Essa intromissão na vida
dos outros, ou vai dizer que não reparou?
Camila ― É melhor você ir se
acostumando, esse é o jeito das pessoas por aqui. Ela não fez por mal, tenho a
certeza.
Dara ― Pode até ser. Mas não há
como negar que aquela senhora conseguiu em poucos minutos informações completas
sobre nós. Seus conterrâneos me parecem ser bem do bisbilhoteiros.
Camila ― Por outro lado, eles
costumam ser muito solidários e afetuosos. Mas isso não tem importância, o
importante é que chegamos e este agora vai ser o nosso cantinho. Acho que vamos
ser tão felizes aqui...
Dara ― Que é que você tá
procurando, Mila?
Camila ― Meu sonífero. Devia
estar neste estojo...
Dara ― Se vamos mesmo ser
felizes, talvez você consiga viver sem os seus remédios. Agora sou eu que estou
dando uma de entrona, mas é que... alimentei essa ilusão por um tempo: achei
que a minha chegada na sua vida poderia fazer você largar as pílulas mágicas...
Camila ― Mas eu sou tão feliz com você! Você nem pode
imaginar o que era a minha solidão, a angústia, o desespero dos dias e noites
em que só pensava em como seria bom simplesmente deixar de existir.
Dara ― Ok, não deixa de ser uma
declaração de amor. Embora pela via negativa, pelo contraste: o que você está
dizendo, no fundo, é que sem mim poderia ser pior...
Camila ― Vamo parar? Dá, tou
super cansada, e quando entro nessa pilha, meu sono fica ainda mais difícil...
Não podemos deixar esse assunto pra depois, não? Por que você tem sempre de ir
tão a fundo em tudo?
Dara ― Tem razão. Às vezes pego
pesado demais... mas é que me faz uma impressão danada te ver tomando um
coquetel pra ligar de manhã, e outras bombas pra desligar à noite.
Camila ― E o que você faz quando
o sono não vem de jeito nenhum?
Dara ― Meditação. Você ouviu o barulho?
Camila ― Sim, veio da cozinha.
Camila ― Sim, veio da cozinha.
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