sábado, 21 de setembro de 2013

os construtores de instantes (parte 3)


            — Senhor Sheldon...
            — Sholem, meu amigo, Sholem.
            — Que seja. Se o que diz é verdade, então basta a gente voltar a dormir, e amanhã vocês reconstroem tudo e o nosso dia recomeça normalmente, certo?
            — Hum, bem, não exatamente...
            — Tá vendo? Que nem serviço de atendimento ao cliente — Doralice falava em falsete —, não é bem assim que consta do nosso contrato, senhor... Lá vem enrolation!
            — Senhora, entenda, quando se levantou da cama inconsciente, nossos alertas falharam. A partir daí, criou-se uma dessincronia, inadvertidamente, vocês caíram num tempo/espaço alternativo. Não temos como levá-los de volta para a dimensão em que viviam antes de...
            — Mas, e os nossos filhos?, vão ficar sem nós? Daqui a pouco — Sérgio olhou para o relógio, parado à meia noite e um minuto — eles têm que ir pro colégio, quem vai levá-los, os seus bombeiros?
            — Quanto a isso não se preocupem, o nosso Departamento Capgras tem sósias de vocês que podem dar conta de tudo que...
            Nesse momento, surtei. Aquele filho da puta de fala mansa deu no meu saco, estourou minhas medidas. Pela primeira vez, comecei a achar que não estava tendo um pesadelo por ter exagerado na lasanha do jantar. A coisa era séria, e o piti da Doralice também.
            — Sósias!? Departamento de sósias?! Tá tirando uma com a nossa cara, é? Qual é a próxima novidade? Então será que também já não sou uma sósia de mim mesma? E o Sérgio também, por que não? Basta ter acordado uma noite pra mijar... e pronto, tá fora. Substitui por outro!
            — Moço, tá na hora de começar o papo reto — cheguei bem perto do cara pra lhe dar uma prensa — Vai explicando melhor essas histórias de dessincronizar, construir instantes, sósias, tempos paralelos, desembucha, vai!
            — Calma, gente, entendo que estejam inquietos. Nós temos como realocá-los, não se preocupem demais. Os descendentes de vocês daqui a milhares de anos, pensem neles como seus tatatatata...ranetos, se tornaram pós-humanos. Tentem imaginá-los como seres feitos de pura informação, memes, criaturas ideológico-espirituais, pura idéia platônica ou hegeliana, formas independentes da matéria.
            — Muita conversa fiada, cara. Que é que isso tem a ver conosco?
            — Já chego lá, se me deixarem. Tão logo a pós humanidade atingiu uma capacidade computacional que lhes permitiu a autonomia em relação ao substrato físico, ou seja, quando conseguiram reproduzir a consciência em processadores quânticos, decidiram criar uma Grande Simulação da sua própria história. Você Sérgio, você Doralice, são apenas possibilidades dentro de uma Matrix de dados.
            — Tava faltando só essa! Então, eu não sou eu, e ele não é ele? Não estamos casados há dez anos, não temos dois meninos, nada é o que parece ser, é isso?...
            — Claro que vocês são vocês, e até são quem pensam ser, a diferença é que a vida real de vocês já aconteceu. O que acreditam estar vivendo, pensando, sentindo, imaginando, hoje, é apenas parte de um grande simulador de hipóteses. Os humanos trans-biológicos querem conhecer em detalhe a seqüência de eventos que leva até o ponto em que "eles" se encontram, como as famílias fazem quando passam antigos vídeos ou folheiam álbuns de fotos de parentes que não chegaram a conhecer... Assim puderam observar diretamente os dinossauros, as interações sociais dos trogloditas, o surgimento da linguagem, etc., eles nunca teriam acesso à verdade factual da sua origem sem lançar mão de uma grande simulação computacional do passado.
            — Ah, que fofo, nem sei qual parte desse lero-lero gostei mais: se do álbum de família, ou daquele detalhezinho de nunca mais ver meus filhos! E nem temos que nos preocupar muito, o senhor Schwepps aí vai providenciar um cercadinho onde seremos "realocados" à espera da solução final. Que maravilha, não?
            Doralice contornou a cama de casal e dirigiu-se ao criado mudo. Para surpresa minha e do homem de preto, tirou de lá um revólver e o engatilhou. Apontou-o para o agente do sistema.
            — Dodó, como é possível? Nós não temos arma em casa!
            — Pois na minha versão desta comédia temos, sim. E você, paspalhão?, faça o serviço de homem: arranca o celular desse papagaio-de-pirata e amarra ele com a silver tape que está no armário!
            — Senhora, por favor, sem violência. Muita calma nessa hora...
            — Mas nós não temos sil...
            Desisti de argumentar com Doralice, aquele mundo louco haveria de possuir uma saída. Precisávamos tentar. Amarrei o cara com a fita que não deveria estar ali. Antes que eu vedasse completamente a boca dele, murmurou desesperado:
            — Não façam isso, vai gerar uma singularidade... por caridade, não olhem nunca diretamente para o Olho do Mundo...


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