domingo, 6 de abril de 2014

O seqüestro de Alda Espinosa (#4)



            Ora, para mim, toda esta história de seqüestro faz-me pensar imediatamente num bando de criminosos dentro de um muquifo sórdido à espera do resgate, ou um remake vagabundo de Sem orquídeas para Miss Blandish, clássico noir dos anos quarenta. No plano maior da minha vida, começo a distinguir uma estranha simetria entre a maneira como conheci os pais dos meus filhos e o reencontro com Anna. São coincidências demais: a carteira esquecida na festa, o telefonema, a mesma cafeteria para devolvê-la, porém, ao invés do rancor de classe nutrido em divergências estéticas e frustração, minha amiga e produtora traz a solução cristalina ― dar cabo do antigo eu.
― Simples assim. Seqüestramos Alda Espinosa, e só vai existir Alda E de agora em diante, a sua personalidade musical solo. Não foi isso que te disse o Darrua?
― Foi. Fizemos uma parceria maravilhosa, eu e o Darrua. Você sabe como são os poetas, sempre têm esse pé, como dizer, lá do outro lado... Musiquei aqueles poemas divinos dele, daí ele quis porque quis jogar os búzios pra mim, divinar de verdade, e foi então que me chegou a mensagem: eu tinha que assumir o “ê”, que é um som de índio, e também um indicador de ligação.
― Muito legal essa coisa do “E” sem ponto, porque não é Alda E., não é questão de abreviatura, mas de abertura, associação. Você é a maior tecedora de laços, a pessoa mais generosa que conheço.
― Tenho oito irmãos, todos músicos. Eu sou a sétima, quase não nascia, tive o mal do simioto, demorei pra vingar. Vovó Alda morreu comigo ainda na barriga de mamãe, senão ia me chamar Lucina Mara. O irmão caçula só veio sete anos depois de mim.
― Uma oitava completa de irmãos musicais...
― É mais ainda, veja, na escala maior existem sete notas, mas não sete tônicas: duas são semi-tons, o mi e o si. A sétima nota, o si, é mais uma transição, uma preparação para o dó da oitava de cima, até porque não existe dó bemol. Sabe?, isso define a minha vida até aqui.
― Aí mora o problema: uma família de músicos, os Espinosa, fica difícil individualizar sua voz no meio deles. É um belo nome, filosófico e tudo, mas a verdade é que Espinosa tem dono.
― Hahaha, de Alda E ninguém é dono, nem herdeiros, nem gravadora!
― O que não te faltam são herdeiros musicais, Alda.
Anna tinha deixado o feijão fradinho de molho na véspera, descascou grão por grão tirando o olho preto, passou tudo na grelha mais fina do moedor de carne, bateu a massa do feijão até ficar bem leve e estourar todas as bolhas de ar, temperando com sal e cebola ralada. Enquanto punha no fogo a frigideira com azeite de dendê, deu uma espiada no panelão onde ferviam inhames pelados e com casca na água pura; com a colher de sopa jogou os bolinhos na fritura, e já começou a refogar noutra panela o dendê junto com o camarão seco, a cebola, o alho, o gengibre, a pimenta, mais uma pitada de sal. Terminou o molho do ipetê e do acarajé quase ao mesmo tempo que apurava o ponto do purê.
― Vixe mãe, Anna, que tanta cozinha, mulher?
― Ah, minha querida, nós não vamos chegar no terreiro de mão abanando. Você é filha de Iansã, não é?, então, cozinhei ipetê, acarajé e bobó de inhame. Ali, trouxe também champanhe, catinga de mulata, cordão de frade, gerânio rosa, açucena, rosas brancas e amarelas. Não vai faltar nenhuma das obrigações.
― Tá certo, Iansã pode se tornar muito ciumenta e vingativa, se eu não conseguir explicar direitinho... é tempestade, raio e facão! Espero que esteja nos conformes.
O terreiro de Mãe Magdalena das Pedreiras estava cheio na quarta feira à noite, a função já ia longe na madrugada quando a entidade decidiu que era hora de atender as demandas. As filhas de santo rodopiavam no salão, levantando o vento que traz a chuva para lavar a terra e semear a paz, o batuque seguia os cantos, as danças se sucediam, mas só ao amanhecer é que sua luz se manifestou por inteiro.
― Eparrei Oyá! ― Alda se ajoelhou, a orixá estava incorporada, o respeito era máximo.
― Minha filha voltou, é? Ou vai me renegar de novo que nem quando tu virou evangélica?
― Perdoa meus descaminhos, mãe.
― Oiá Funán, Adagangbará! Tá querendo o quê com essa mania de mudar de nome?
― Ee...
― Shiu, não me venha com mini-dramas, miligramas, essas lágrimas mundanas! Oiá não podia parir, mas alcançou depois de sacrificar um carneiro. Tu teve cinco filho, de três pai diferente, mas não devia, porque não tinha cabeça pra isso. Tu só namorou gato mimado, seus ex são desafinado.
― Pois é, sempre tive o dedo podre pra homem...
― Tem desespero não, fia, Oiá ganhou seus poderes dos amantes que teve: de Ogum ganhei nove filhos e o direito de usar a espada; de Oxaguiã, o escudo; de Oxóssi, a caça; com Exu, o poder do fogo e da magia; de Logum Edé, vieram os frutos d’água; só assosseguei com Xangô, que me trouxe o dom do encantamento, da justiça e dos raios. Único que não quis nada comigo foi Obaluaê.
― Minha Iansã, peço sua bênção, quero fazer minha música tocar no rádio, tocar na novela. Um pouco de grana e sucesso não fazem mal a ninguém, mãinha.
― Sucesso, sunssê diz?, com essas melodia e ritmo reguingado? Menina, Mãe Oyá ouvia canção de escravo muito antes de tu nascer, acha que eu não sei de onde vem a tensão e o movimento? Acha que eu nunca ouvi heavy metal? Ocê canta: “Vou dizer em sol, vou dizer em si, vou dizer em fá, o que vim fazer aqui”, e ainda quer povão no teu show? Tua corda tá é bem do amarrada na caçamba do Itamar!



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