sábado, 6 de dezembro de 2014

Perivaldo e Cecivânia #5



Não teve dois nem três, Peri saltou de banda e saiu de fininho do esquema dos malucos da Roosevelt. Ali não tinha nada pra ele. Tava com sono, noiado, em todo lugar via rostos conhecidos, e conhecidos davam pista, falavam, davam pala pros bandidos virem catá-lo e metê-lo no paletó de madeira. Não tinha feito nada, não era justo morrer tão jovem. Pôs os fones no ouvido.
Morre negra, morre jovem, morre gente da favela
Morre o povo que é carente e que não passa na novela
28 de Setembro não é só mais um
É dia de luta, não é um dia comum
Direito imediato, revolução de fato
Protesto na batida, ventre livre de fato
Embicou pelo túnel da Radial, seguindo maneiro na estreita calçada margeando o rio de carros, daí caiu pra saída da Rui Barbosa e foi subindo a Treze de Maio até virar à esquerda, bem na altura de pegar o viaduto da Beneficência Portuguesa e chegar suadão no Centro Cultural da Vergueiro. Um upa do carai. Sentou num banco, pra desbaratinar a sede, tomou umas goladas do squeeze de plástico desbotado. Esperou por ela balançando o skate com um pé e marcando a batida com o outro, no corredor onde montou campana, paredes de vidro assentadas na estrutura de concreto serviam de espelho para uma variedade de trupes e grupos ensaiar suas coreografias.
Vai dizer que não sabia?
Vai dizer que é engano?
E ela chegou chegando, causando ― Peri sentiu o terremoto surdo de reações à sua volta ―, os passos ritmados, saracoteando os dreads, criando a cadência como quem evolui em vez de andar, muito negra, linda, na sua roupa descolada a delinear um corpo esperto e flexível, no qual cada movimento parecia se resolver na máxima extensão da leveza e da graça. Aquela menina parecia ter recebido no berço todo o tabuleiro da baiana de qualidades, adivinhava-se imediatamente nela a imponderável mistura de inquietude, sorte e confiança daqueles em que o dom se manifesta sem deixar dúvidas.
Ceci transpirava a beleza bravia, a fúria multicolorida do dragão, e ainda vinha muito samba no pé. Já tinham trocado uma idéia, e até ficou no ar um interesse mútuo, mas sempre se sentira um pouco muito intimidado diante dela.
Pra azar do garoto, o Sweet Nightmare estava na vibe de ensaiar bastante naquele dia, lá estava, lá ficou, ouvindo um som, balançando o pé, devorando a mina com o olhar muquiado pelos óculos escuros comprados no camelô. De vez em quando fingia checar alguma coisa no celular, puro migué, o dele não era espertofone. Haviam se conhecido ali, um dos poucos lugares que ele freqüentava na cidade, ponto de encontro de dançarinos jovens em busca de espaço na cena; pertenciam a tribos diferentes, e ele sacou que as diferenças não paravam no estilo: a mina era bem tratada, roupas e acessórios de marca, enfim, não devia ser burguesinha, mas batata que não era favelada como ele.
― E aí, seu grupo não veio?
― É, tá com jeito que ninguém vai colar hoje...
― Hmm, pelo menos tira esse bico da sua cara, cê tá meio estranho, não? ― ela percebeu a dificuldade dele e resolveu aliviar ― Desculpa, tô fazendo um monte de perguntas idiotas.
― Não existem perguntas idiotas, só respostas. Suave, tô de boa.
“O amor é sempre a resposta, não importa qual é a pergunta”, ela pensou, mas não disse.
― Você... já acabou?
― Bem, acho que ainda vamos rever a filmagem, mas já tá bem redondo, não achou?
― É, sim, você tá muito bem.
― Não perguntei de mim, mas do grupo...
― Então, é que... na real eu tô precisando levar um particular com você, um papo reto. Faz tempo.
― Bom, só se for agora. Tô aqui, agora, tu não pode é querer que eu fale por você. Desembucha logo, não gosto de mistérios. Você tá a fim... de mim?
― Não, quer dizer, sim, ou melhor, também... mas isto nem é o mais importante...
― O que é que pode ser mais importante que isso??
― Não, não era isso que eu queria dizer.
― E o que você queria dizer então?
― Ceci, eu juro que tô limpo nessa, sou trabalhador, faço correria de motoboy pra ajudar minha mãe de coração e nem tenho carteira, mas é que tô num puta angu de caroço, me cagüetaram...
― Fala logo, criatura, tá mais arrastado que novela das oito!
― Então, meu, fizeram minha caveira pros broder da facção, não posso voltar pra casa. Tô na roça, não tenho família. Será que cê sabe onde eu poderia dormir, só por hoje?


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