Não teve dois
nem três, Peri saltou de banda e saiu de fininho do esquema dos malucos da
Roosevelt. Ali não tinha nada pra ele. Tava com sono, noiado, em todo lugar via
rostos conhecidos, e conhecidos davam pista, falavam, davam pala pros bandidos
virem catá-lo e metê-lo no paletó de madeira. Não tinha feito nada, não era
justo morrer tão jovem. Pôs os fones no ouvido.
Morre negra, morre jovem, morre gente da favela
Morre o povo que é carente e que não passa na novela
28 de Setembro não é só mais um
É dia de luta, não é um dia comum
Direito imediato, revolução de fato
Protesto na batida, ventre livre de fato
Embicou pelo
túnel da Radial, seguindo maneiro na estreita calçada margeando o rio de carros,
daí caiu pra saída da Rui Barbosa e foi subindo a Treze de Maio até virar à esquerda, bem na altura de pegar o viaduto da Beneficência Portuguesa e chegar
suadão no Centro Cultural da Vergueiro. Um upa do carai. Sentou num banco, pra
desbaratinar a sede, tomou umas goladas do squeeze de plástico desbotado.
Esperou por ela balançando o skate com um pé e marcando a batida com o outro,
no corredor onde montou campana, paredes de vidro assentadas na estrutura de
concreto serviam de espelho para uma variedade de trupes e grupos ensaiar suas
coreografias.
Vai dizer que não sabia?
Vai dizer que é engano?
E ela chegou
chegando, causando ― Peri sentiu o terremoto surdo de reações à sua volta ―, os
passos ritmados, saracoteando os dreads, criando a cadência como quem evolui em
vez de andar, muito negra, linda, na sua roupa descolada a delinear um corpo
esperto e flexível, no qual cada movimento parecia se resolver na máxima
extensão da leveza e da graça. Aquela menina parecia ter recebido no berço todo
o tabuleiro da baiana de qualidades, adivinhava-se imediatamente nela a
imponderável mistura de inquietude, sorte e confiança daqueles em que o dom se
manifesta sem deixar dúvidas.
Ceci
transpirava a beleza bravia, a fúria multicolorida do dragão, e ainda vinha
muito samba no pé. Já tinham trocado uma idéia, e até ficou no ar um interesse
mútuo, mas sempre se sentira um pouco muito intimidado diante dela.
Pra azar do
garoto, o Sweet Nightmare estava na vibe de ensaiar bastante naquele dia, lá estava,
lá ficou, ouvindo um som, balançando o pé, devorando a mina com o olhar
muquiado pelos óculos escuros comprados no camelô. De vez em quando fingia checar
alguma coisa no celular, puro migué, o dele não era espertofone. Haviam se
conhecido ali, um dos poucos lugares que ele freqüentava na cidade, ponto de
encontro de dançarinos jovens em busca de espaço na cena; pertenciam a tribos
diferentes, e ele sacou que as diferenças não paravam no estilo: a mina era bem
tratada, roupas e acessórios de marca, enfim, não devia ser burguesinha, mas
batata que não era favelada como ele.
― E aí, seu
grupo não veio?
― É, tá com
jeito que ninguém vai colar hoje...
― Hmm, pelo
menos tira esse bico da sua cara, cê tá meio estranho, não? ― ela percebeu a
dificuldade dele e resolveu aliviar ― Desculpa, tô fazendo um monte de
perguntas idiotas.
― Não existem
perguntas idiotas, só respostas. Suave, tô de boa.
“O amor é
sempre a resposta, não importa qual é a pergunta”, ela pensou, mas não disse.
― Você... já
acabou?
― Bem, acho
que ainda vamos rever a filmagem, mas já tá bem redondo, não achou?
― É, sim, você
tá muito bem.
― Não
perguntei de mim, mas do grupo...
― Então, é que...
na real eu tô precisando levar um particular com você, um papo reto. Faz tempo.
― Bom, só se
for agora. Tô aqui, agora, tu não pode é querer que eu fale por você.
Desembucha logo, não gosto de mistérios. Você tá a fim... de mim?
― Não, quer
dizer, sim, ou melhor, também... mas isto nem é o mais importante...
― O que é que
pode ser mais importante que isso??
― Não, não era
isso que eu queria dizer.
― E o que você
queria dizer então?
― Ceci, eu
juro que tô limpo nessa, sou trabalhador, faço correria de motoboy pra ajudar
minha mãe de coração e nem tenho carteira, mas é que tô num puta angu de
caroço, me cagüetaram...
― Fala logo,
criatura, tá mais arrastado que novela das oito!
― Então, meu,
fizeram minha caveira pros broder da facção, não posso voltar pra casa. Tô na
roça, não tenho família. Será que cê sabe onde eu poderia dormir, só por hoje?
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