domingo, 1 de fevereiro de 2015

Perivaldo e Cecivânia (fim)


Massas negras haviam estacionado sobre os céus, empurradas pela ventania inicial, nuvens maciças como bigornas perfilavam belicosamente suas colossais torres de guerra ameaçando envolver a cidade na batalha final do Armaggedon. Enquanto desciam o downhill mais alucinante das suas vidas em slalon pelas ruas e vielas sentiram nitidamente aquele aperto no peito que paralisa todos os seres vivos no preciso instante em que a pressão atmosférica despenca anunciando a tempestade. Fez-se a noite com sol a pino, um clarão repentino devolveu a luz do dia ao dia, encolheram o corpo instintivamente abaixando a cabeça na espera do trovão que veio rugindo e ribombando junto com as primeiras bagas grossas de granizo e chuva. O temporal anunciado desde cedo desabou com força de catástrofe.
Mas os problemas dos dois jovens não paravam por aí. O Aristeu tinha dado a letra, os tiras farejaram negócio, e a fita foi passada ao trafica que ofereceu um agrado pros civis trazerem o pacote pra ele, porém, cabrero de pagar duas vezes pelo mesmo serviço, botou o Magaiver na cola do moleque. Pelo sim, pelo não.
A diferença é que este último não estava nem aí pra hora do Brasil, pilotava moto à vera e não perdeu a pista deles na perseguição, cheiradaço, vinha com tudo no cavalo doido cuspindo baba e feroz feito pit bull de rinha, pronto a saltar-lhes no pescoço na primeira marcada de touca que dessem. Já encaixada na agulha da automática trazia a bala com o nome do Peri, mas não se incomodaria de gastar prego com a mina se ela resolvesse engrossar o caldo. Magaiver não fazia serviço pela metade.
― Xi, moiou pro nosso lado Ceci, tem um profissão perigo na nossa captura!
― O quê?! Não tou ouvindo nada com essa chuva!
― Firmê, tamo quase na Facó, temos que ir pra pista da esquerda e seguir na contramão, longe do cara. Ói lá, se liga no berro da cintura dele, aquele ali da moto, tá na cola da gente faz uma cota.
O bandido sacou de cara a manobra que tentavam, na calçada do outro lado da larga avenida trafegariam a salvo dele protegidos atrás do mar de carros presos no congestionamento da via já alagada pelo dilúvio.
― Peri, ele tá vindo pra cima do canteiro central, vai conseguir atravessar logo mais!
― Tô vendo, mantém a cabeça baixa Ceci, esse maluco não tem medo de mandar bala no meio do melê!
― Cê não tava brincando mesmo: polícia e ladrão atrás de um moleque só, é ruim, heim?!
A avenida general Edgar Facó é uma das tantas a engolir a hidrografia original da cidade, no caso, o ribeirão Verde, cujo canal cimentado em alguns pontos desaparece sob pequenas praças que servem de cruzamento para vias transversais e também como alças de retorno. Num destes acessos Magaiver cruzou para a calçada da pista oposta e começou a disparar na direção deles, o barulho da chuva abafava os tiros mas viam distintamente os clarões da arma.
― Puta que pariu, tá atirando em nós, tá atirando!
― Minha nossa, ali em frente alagou de vez. Vamos a pé, Ceci!
― Sim, mas esse matusquela vai continuar a vir do mesmo jeito. Vixe, ali adiante é o rio, tá tudo alagado!
Peri estremeceu, ergueu a cabeça e estendeu os olhos pela larga esteira do rio que, enroscando-se como uma serpente monstruosa de escamas sujas, ia perder-se no fundo enegrecido da marginal Tietê. Catou um sofá arrastado na enxurrada e montou nele agarrado a Ceci, na superfície coalhada de entulho rolava um som cavernoso semelhante a uma cachoeira precipitando-se do alto de rochedos. Viram seu perseguidor ser engolido na torrente furiosa e sumir no mar de lama.
Atingiram a região do cruzamento das marginais, os viadutos do Cebolão pareciam estranhamente baixos devido à subida do rio; não era mais uma trovoada, ou um temporal, sabiam agora que estavam sendo carregados por uma tromba d’água furiosa e sem freios. Pouco acima do nível das águas elevava-se uma imponente palmeira imperial a cujas folhas se agarraram, aninhando-se em sua copa. Não havia mais como fugir, os céus bramiam sacudidos por estampidos brutais e o mar barrento precipitava-se em vagas que arrastavam carros, ônibus e pedaços de concreto como brinquedos de criança.
Séculos de barbaridades urbanísticas eram vingados pelo enorme Boitatá das profundezas que mordia a raiz dos prédios e avenidas, arremessando tudo no turbilhão, girando a cauda imensa, apertando nas mil voltas dos seus anéis, a cidade assustada e rendida às margens da caravana da destruição. Tudo era uma mesma água e céu escuro. A inundação tinha devorado as margens do rio até onde as trevas deixavam ver, árvores estalavam ao ser arrancadas pela raiz ou partidas pelo tronco. A palmeira não resistiu: sua copa saltou num golpe, Peri e Ceci viajavam à deriva na corola de um lótus gigantesco feito de folhas de palmeira.
― Quero te beijar!
― O quê?!
― Quero te beijar Peri, se for pra morrer que seja juntinho!
― Beijar sim, morrer nem fudendo! Meu, agora que achei você nada vai me tirar, nada.
O hálito de um aquecia o rosto do outro, eles sorriam, os lábios se abriram como asas purpúreas de um beija-flor em pleno vôo. A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia.
E sumiu no horizonte.


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