domingo, 22 de maio de 2011
o menino quer acordar - parte 1
“A imagem inicial é um imenso quadro a óleo; em primeiro plano, banhados por uma luz celestial, aparecem as figuras esplêndidas de um Doge de Veneza e sua esposa que avançam na direção de uma balaustrada. Trata-se de um homem velho de barba cinzenta, seus traços revelam, sob o bronzeado marcante, uma grande mistura de sentimentos, ora impetuosidade e orgulho, ora hesitação e inquietude; ela é jovem, quase menina, e não precisamos de muita imaginação para ver nela a aparição de um anjo, sua expressão cintila delicadas fulgurações de arrependimento, desesperança e fé. Atrás deles, paramentados com rico libré, um homem segura um guarda-sol ornado de borlas douradas e uma mulher carrega nos braços uma bacia de prata com água e toalhas brancas.
De um dos lados da balaustrada, um rapaz sopra uma concha de tritão e, nas águas abaixo dele, desliza uma gôndola ricamente decorada de onde se ergue a bandeira veneziana ladeada por dois remadores. Na larga extensão marinha que se vê ao fundo do quadro flutuam centenas de velas; à esquerda, divisa-se o campanário da basílica de San Marco, enquanto que, mais para a frente e à direita, as cúpulas da igreja de San Giorgio Maggiore e, mais além ainda, pontificam as torres arredondadas em estilo mourisco dos palácios de Veneza, a Magnífica. Na parte inferior, pintadas como se houvessem sido esculpidas num brasão de pedra, liam-se as seguintes palavras:
In una cascata di sangue
navigherò con una rossa vela
per orridi silenzi
ai cratèri
della luce promessa
A. Pozzi”
“É a velha casa da minha família, onde morei por toda a minha infância e onde meus pais moraram até morrer, na Ponte Rasa; mas a disposição dos cômodos lembra a dos meus avós, na verdade, o terreno de todas as casas era comum, meu avô foi construindo aos poucos no sistema de mutirão de vizinhos: nos fins de semana minha avó fazia uma galinhada, uns traziam pão caseiro, outros, maionese, farofa ou vinagrete, e assim se juntavam os homens e os rapazes com força de homem para ‘bater a laje’. Virar adulto, na época, era o mesmo que casar; todos os tios e tias ao casar ganhavam um puxadinho de parede colada no entorno da vila operária. A exceção foi o tio Miro, que se mudou para a casa dos fundos da família da mulher.
Não sei dizer o que mais fortemente ficou gravado em mim da casa da vila. Poderiam ser os pratos americanos de bordas bisotadas com desenhos de flores geométricas. A fruteira desbeiçada de plástico no centro da mesa. Os talheres, comprados um a um, de tamanhos e formas diferentes. Ou ainda os copos, de vidro para os pais, de plástico opaco para nós, as crianças. O porta-guardanapos de ferro polido, presente de casamento, que ficava na cabeceira da mesa junto ao lugar do meu pai. A lata sem tampa onde se guardavam as fatias torradas do pão de véspera, de um azul desbotado em que estrelinhas douradas resistiam sob os arranhões e as partes enferrujadas. O feijão mulatinho, o arroz, que nos dias de festa vinha acompanhado de tomate, coentro e colorau.
Mas talvez sejam mesmo as fotos ― as únicas enquadradas ― que ficavam na sala, ao lado do rádio a válvula: uma casinhola de pedra em Brubno, na Croácia, de onde a família da minha mãe fugira na 1ª Guerra e, ao lado, a foto de um bebê. Coisas soltas e descasadas como eram os objetos daquela casa, coisas que venho carregando há tantos anos e com tanto trabalho, equilibrando-as para que não caiam e quebrem, levando junto com elas as relíquias memoriosas daquele tempo mágico.”
Eu sou mais sabido do que deveria para os meus onze anos incompletos. No começo, meus pais acharam que era a internet e a TV; bloquearam sítios e canais impróprios. Nada a ver. Depois veio a fase holística, me levaram a médiuns, benzedeiras e até mesmo a uma monja budista. Se eu dizia coisas tão surpreendentes, vai ver era ‘sensitivo’, ‘evoluído’, ou coisa assim. Ruim mesmo foi a fase dos psiquiatras infantis, fui tachado de bipolar, autista, DDA e superdotado. Atualmente, são os neurologistas.
É osso. Ninguém sabe o que está acontecendo e saem falando um monte de groselhas na maior cara de pau. Não sei como isso aconteceu, o que sei é que aprendi, ou vai ver já nasci sabendo, a entrar no sonho dos outros. Basta dormir perto de uma outra pessoa que está dormindo, e ploft!, já estou dentro dos sonhos e fantasias dela. Descobri isso depois de sonhar noites seguidas com músicas (as músicas mais lindas que já tinha ouvido!) e vôos pela cidade. Voava de árvore em árvore, cantava, escutava, procurava, pegava insetos, migalhas e minhocas e morria de medo dos gatos. Não existe nada melhor do que poder cantar e voar.
Levei meses para entender que estava dentro do sonho de uma sabiá que tinha feito ninho no galho perto da janela do meu quarto. Daí trouxe meu cachorro para dormir na minha cama e comecei a ter sonhos perfumosos, um mundo de cheiros incríveis que eu desconhecia totalmente. Me arrependi MUITO de ter pedido para voltar a dormir na cama dos meus pais. Mas aí não parei mais e, de tanto sonhar, esqueci como acordar.
Os médicos dizem que estou em coma sem causa aparente, mas dão esperança aos meus pais dizendo que há atividade cerebral. Se soubessem! Esses dois sonhos aí acima são dos meus vizinhos de UTI, uma senhora velhinha que sofreu um derrame e um professor de história que teve um acidente de carro. Eu só quero acordar.
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