sexta-feira, 6 de abril de 2012

A Caixa (parte final)


Prestes a obter as primeiras respostas desde que acordei, surgem-me duas idéias aparentemente desconexas entre si, embora a primeira decorra da situação e expectativa formadas: quem eu gostaria de encontrar agora?
Por outro lado, havia a história de um menino que recebeu um dom precioso, mas o medo e a mágoa fizeram dele um homem triste e poderoso, impedindo que se cumprisse seu grande destino. Onde vi, ou ouvi, isto é que não fica claro, porque a lembrança vem descosida de imagens ou informações biográficas.
Ouço passos, há alguém do outro lado.
Aproximo-me da porta, um tropel de medo e curiosidade hesitante pisando no acelerador e no freio descoordenadamente. O pouco que dá para ver de través, é um quarto com as mesmas paredes, o piso sintético, uma parte da cama e o buraco da privada. Sem janelas.
Deslizo arrastando os pés descalços com cautela até me postar por inteiro na abertura que liga as duas celas. É decepcionante não haver uma saída para fora, para qualquer outra coisa que não seja este mesmo lugar. Não há comunicação aparente para o exterior, apenas uma grossa porta de acrílico entre dois cômodos simétricos.
Lá está ele, o meu vizinho. Um homem atarracado e pálido metido no pijama amarelo, o ar desvairado que a barba e os cabelos compridos reforçam. Permanecemos silenciosos frente a frente durante um longo instante de observação mútua. O evidente atordoamento dele me faz desconfiar que também ignora tudo sobre a sua situação. Só não parecemos uma dupla de mímicos brincando de espelho porque estou sem a camisa do uniforme.
Ele toma a iniciativa.
― Kiu estas vi? Kio estas ĉi tiu loko? Kio estas ĉi tiu loko?
― Que azar, um estrangeiro... Não entendo patavina do que você fala, meu amigo. Do you speak english? English, do you speak english? ― não sabia que falava inglês, talvez só conheça estas palavras.
― Mi ne komprenas kion vi diras. Kie vi estas?
― Ai, ai, começamos mal, assim não nos entendemos. Esta conversa não ajuda nada deste jeito...
― Liaj haroj, lia barbo, vi batis tie ankaŭ! Kio okazis al ni?
O cara passa para o meu quarto e põe-se a andar por ele, esquadrinhando todos os cantos. Desconfortável. E antipático: um pouco entrão por demais. Vamos tentando manter um contato rudimentar por meio de gestos. Podia ao menos falar a minha língua, o paspalho.
― Como pode ver, este é o apartamento decorado, duplex, hãm, os aposentos são modestos, mas limpinhos. A vista é que não é lá essas coisas... ah, desista, você não vai entender nada mesmo...
― Kio estas ĉi tiu loko? ― o sujeito repete várias vezes esta pergunta falando consigo mesmo, o que me deixa ainda mais puto da vida. Loco, loco ele diz, loco é tu, mané.
O rosto dele é indefinível sob a barba hirsuta, tenho a impressão de que não se parece com os que estava acostumado a conviver na vida esquecida que deixei para trás; mas também nada me garante que isto seja verdade. Ele estaca, espia em torno, como para se certificar de que não somos escutados, e se aproxima do meu ouvido enquanto aponta ambos indicadores para o peito e a cabeça sublinhando as palavras.
― Volis scii, kiu mi estas, sed mi ne memoras ion.
Sem se importar com a minha incompreensão, puxou meu braço me arrastando para o canto. A manobra era de um ridículo pueril, como se, ao esconder a cara, houvéssemos deixado de ser vistos e passado para um aposento privado.
― Rigardu kion mi trovis en la angulo de la ĉelo...
De repente, vejo-o pondo a mão por baixo da camisa no gesto de buscar algo. Um lâmina rebrilha na obscuridade.
Balanço o tronco para trás instintivamente, mas interrompo o movimento voltando na direção dele com o joelho direito erguido atingindo-o em cheio na barriga. (Essas coisas são muito mais difíceis de começar do que parar.) Ele cai gritando de dor, eu me atiro em cima desfechando socos, mordidas e pontapés. Tamanha é a fúria que chego a me sentir tranqüilo, quase feliz, executando uma coreografia familiar de tão fácil; experimento, neste estado de suspensão, a estranha euforia que proporciona a proximidade da morte.
Depois de um tempo em que ele já não reage caído no chão, dou-lhe os últimos chutes e saio dali para me sentar na cama. Parece que já não respira.
Desmaio de cansaço.
Ao acordar, a cela está vazia. Não há sinais do meu vizinho; não fosse pelo sangue e os arranhões dos braços e do tronco, poderia acreditar que tinha tido um pesadelo. O pé direito está inchado, a unha de um dedo da mão, virada: os golpes existiram e foram para valer. Porém a dor não vem daí.
Faz um pouco de frio, resolvo colocar a camisa que está jogada no chão ao lado de onde vomitei. Ao me baixar, vejo uma tira de tecido coberta de sangue fresco. Era isso que o cara ia me mostrar: uma fita adesiva prateada.
O que fazer comigo? O sentido do que aconteceu escapa, mas sou capaz de antecipar o desolamento e aridez da responsabilidade total. O que fazer com o que eu fiz?
A única verdade que não dói é a dos outros. Se até há pouco tempo não sabia nada acerca de mim, na hora do sapeca iá-iá obtive a informação essencial: martelo ou prego?, lutar ou correr?; passei por uma tomografia ontológica só para descobrir que não existem bons ou maus, apenas homens que fazem o mal e homens que sonham com o mal. De um só golpe me vi do tamanho de Deus, velho como o Universo, abolindo o certo e o errado, emergindo em pleno nada, sem Deus, sem desculpas, diante de um futuro infinitamente culpado.
Decidi que vou guardar esse troço comigo; um souvenir da vida daqui pra frente. Parece pouco, e talvez seja muito pouco, mas é suficiente para contar a minha história. A do sobrevivente.

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