André se levantou com os punhos
fechados pronto para socar a cara do irmão; a meio do caminho, pensou melhor.
Pôs-se a andar em círculos pela cozinha como um tigre de circo.
Pisava duro, parecia esperar por uma oportunidade melhor enquanto o irmão remexia o café na
caneca com a maior calma do mundo.
―
Quer saber? O Tiago morreu fazendo aquilo que mais gostava, cercado de amigos,
irmãos de afinidade. Ele acreditava no que fazia. E você, bródi, qual é a tua
mesmo? Pensa que não te filmei lá na Santa Zita, fingindo que rezava? Rapá,
tudo na tua vida é fake, teu carro é
o falso smart car, o cavanhaque, cê
pintou de loiro, anda pra cima e pra baixo com esse cachimbinho de boiola que
tu faz que fuma... fala sério, mano, tu é o maior espuma de chope, nada é à
vera, até a filosofia é de araque... como é que é mesmo?, religião pros ateu,
fé pra leigo... que porra é essa, hem? Mano, tu é falso que nem nota de três
real.
―
Bom, bom, chega; não vamos a lugar nenhum nessa toada. Nós dois estamos
abalados... é uma seqüência de tragédias, mas precisamos esfriar a cabeça e
falar a mesma língua, agora que a mãe... não está mais aqui. Ninguém tem o
monopólio da dor.
André
parou na frente da pia, inclinou-se para alcançar a alavanca do vitrô
basculante da janela. O frio havia piorado.
―
Falando em monopólio, parece que temos um aqui... não é irmão?
―
Como assim? Que é que você está querendo dizer?
―
Não estou querendo, estou dizendo. Dona Gildair fez uma doação pra um de nós
dois. E não foi pra mim.
―
Como é que você...? Quer dizer, você está invertendo as coisas; não é bem assim...
―
Ah tá, não deve ser assim, deve ser assado. Agora diz você pra mim: que é que
eu vou pensar de um Judas que vê a mãe de luto, na pior, tomando uns tarja
preta bem nervoso, e cola nela pra ficar com a casa onde ela mora?
―
Não admito que você me fale desse jeito, não é...
―
Não é, mas parece, meu bróder. Ainda mais quando a gente lembra que esta região
valorizou muito depois da chegada da estação de metrô... diferente de tu, meninão,
que nunca valorizou nem o bairro, nem a família de onde veio ― estendeu ambos
os braços, virando de frente para o irmão mais velho ― Este cafofo agora vale
uma gaita da boa.
―
Pois foi pensando na família que a dona Gilda me chamou. Foi ela que me
procurou. E quer saber? Ela estava muito preocupada com você, queria que eu
cuidasse do patrimônio porque sabia que você não tem responsabilidade pra
cuidar nem de um canário-da-terra.
Logo
após a morte do irmão, efetivamente, Lucas se reaproximara da mãe. Foi nesta
breve convivência que acabou por descobrir a galinha dos ovos de ouro; a mãe
falou-lhe da oferta de uma empreiteira que pretendia derrubar meio quarteirão
da rua para construir um condomínio de luxo. Cardiopata, extremante abalada com
o assassinato de Tiago, Gildair temia morrer de uma hora para a outra; receava,
sobretudo, que André dissipasse a herança que deveria lhe garantir algum
futuro.
Lucas
contratou um advogado de sua confiança que sacramentou na letra da lei a doação
dos cinqüenta por cento do imóvel de que a mãe poderia dispor em vida. Assim , Lucas
passava a ter direito sobre três quartos do valor do imóvel; o que ele não
tinha como saber: a funcionária do cartório onde lavraram a operação era
cliente do Gilda Beauty e revelou a tramóia toda para André.
―
Luquita, tá ligado que a Cleide tá de barriga?...
―
Sim, a mãe também me contou essa: mais uma das suas... já deve estar pra
nascer, né? Por essas e por outras é que ela me pediu pra...
―
Desliga a fita, meu, comigo não precisa fazer o número do arrimo-de-família,
comigo não violão! Tu só serve de arrimo é pra ti mesmo... Acontece que tenho
novidades: o brasilino não é meu, é do Tiago ― André fez uma pausa e esperou que
a revelação fizesse efeito.
―
Tá doidão? A Cleide sempre foi treta tua, Dé, que merda é essa agora?
Na
mosca.
―
Olha aê, assim tu parece que foi criado na quebrada, não aquele mauricinho que
põe blusa de gola rolê pra pagar de papo-cabeça...
―
Pára de falar asneiras e me explica essa história, André.
―
Acontece, Luqueta, que, sem herdeiros, nosso irmão Tiago sairia da frente na linha
dos herdeiros, não é? Mas, e se ele tiver um filho?, e se a mãe desse filho me
deixar administrar a parte dele enquanto ele for menor? Daí, queridão, a tua porcentagem
da bolada, mesmo com a doação da mamãe, muda um pouco, precisa dividir mais, né
não?
―
Deixa de ser idiota, o filho é teu!
―
É verdade. Mas você ainda deve lembrar que eu e o Tiago éramos gêmeos... como
provar? Vai valer o que mãe disser.
Lucas
se encaminha na direção da saída com as chaves do carro na mão; treme de
nervoso, mas procura disfarçar a comoção.
― Não acredito
que você é capaz de uma coisa destas!...
―
Dona Gilda também não acreditava que você ia me esfolar, Lucas, aliás, ela
nunca soube avaliar os homens direito. Nem mesmo os próprios filhos. Já você,
mano, acha que porque tem um canudo é mais ligeiro que todo mundo; é o problema
dos inteligentes: acham que só eles são inteligentes.
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