Vida que
segue. Irma tomou o ônibus de volta para o litoral; viagem que transcorreu
debaixo de um céu azul sem nuvens, e mudou radicalmente na descida da serra
para um fim de tarde chuvoso. Ela ainda não tem como saber, mas cada palavra da
médium será confirmada ponto por ponto nas semanas seguintes. Ninguém a espera
na rodoviária, o marido está fora da cidade a trabalho. Impossível pegar uma
condução: os pontos dos ônibus de linha estão cheios de gente voltando para
casa. Resolve ir de táxi.
Então,
acontece a única coisa não prevista pela benzedeira do algodão; um dos molambos
de gente da calçada se levanta e vem na sua direção.
― Irma, você
ainda se lembra de mim? ― um rapaz magérrimo, um ‘nóia’, desses que vagam como
zumbis pelas ruas. Mãos e cintura limpas, não está armado.
A moça encara o
mendigo dentro dos olhos, o susto dando lugar pouco a pouco ao reconhecimento.
― Lembro sim, você... nós fomos vizinhos há muito tempo, como cê tá mudado...
― Irma, a
gente namorou, você esqueceu? Eu fui seu primeiro namorado, e você, o meu
primeiro amor...
― Verdade! Mas
isso foi há muito tempo; eu era outra pessoa, e você, bem, era uma pessoa...
― Você pode me
ajudar?, tem uns cara aí que me prometeram... querem me apagar ― o rapaz
balançava os braços, como se desse corda em si mesmo para falar, agarrado a um
cobertor exíguo que mal lhe cobria o tronco ossudo. O olhar parecia vagar a uma
distância infinita dali.
Deu-lhe dez
reais.
Tirou uma
licença do serviço na prefeitura, onde trabalhava como técnica de informática. Precisava
de tempo livre. Disse para o marido que ia visitar parentes no interior ― o que
era rigorosamente verdade ―, só não lhe contou que ia conversar com a mulher
que a pôs no mundo pela segunda vez em vinte e seis anos.
Potirendaba,
cidadezinha com quinze mil habitantes na região de São José do Rio Preto. Todos
lá conhecem a mãe dela, uma filha da elite local que mora numa casa arruinada, infestada
por capim-gordura e gatos recolhidos da rua. Os vizinhos deixam-lhe pratos de
comida na varanda que ela divide com os bichanos; no fim do dia, passa em um
dos dois restaurantes da cidade e recolhe um marmitex para passar a noite
trancada e falando alto sozinha.
― O nome dele
está anotado nesse papel. Tive medo de um dia esquecer. Pode ter mudado, pode
nem ser o nome certo, não sei; era um belo de um safado. Quando soube que as
minhas irmãs tinham conseguido me deserdar, caiu no mundo.
Deu-lhe umas
roupas velhas que tinha e seguiu caminho. Usavam praticamente o mesmo número de
roupa. Percorreu diversas cidades do estado no encalço do pai, em todos os
lugares, a mesma história: o sujeito vinha do nada, se amasiava com uma dona
rica do local e ficava uns tempos desfrutando do bem bom. Depois, sumia de
novo. Trabalho de carteira assinada parecia contra os seus princípios, dava
expediente comercial em
boteco. Descobriu nestas andanças tios e primos distantes, e
mesmo algumas irmãs e irmãos seus, ou metade disso. Nenhum deles tinha pistas
ou queria saber do fujão. Era tal e qual o chopim de que Eldenezir falara,
espalhando filhos e sofrimento por onde passava. Até que perdeu a pista.
Foi quando se
lembrou de uma colega de trabalho que havia passado num concurso; a moça estava
lotada na Justiça Estadual e talvez pudesse acessar algum banco de dados de
processos criminais. Uma hora um malaco desses dá uma falseta, não é possível
ser liso sempre, pensou. As suspeitas da mãe louca (mas nem tanto) eram
corretas, ele evitava usar o nome de batismo; mas, numa única vez, lavrou uma
escritura com os documentos originais. Havia engabelado uma viúva dona de uma
distribuidora de bebidas em Mogi das Cruzes, vendeu um terreno da coitada, e aí...
fumaça. Recebeu pena mínima, o crime prescrevera há cinco anos. O registro, no
entanto, ficou: estelionato.
A partir daí,
o problema mudou dramaticamente de figura: do fio de informação que obteve de
testemunhas da época puxou uma linha que a levava de volta para Santos, ou
melhor, para a cidade em que morava a irmã dele que lhe lavava as roupas até
hoje. E onde, como de costume, também tinha deixado uma cria para trás ― um
filho que vinha a ser ninguém menos que seu meio-irmão e legítimo esposo! A
identidade verdadeira do seu pai de mentira era uma verdadeira bomba. Uma bomba
atômica capaz de arrasar toda a sua vida instantaneamente; um por um, Irma via
comprometidos os alicerces daquilo por que mais lutara, a tão sonhada vida
“normal”: um bom homem, filhos, casa própria, carro.
Por sorte, a
ex-colega do tribunal não tinha como saber destes desdobramentos; ninguém
poderia saber, esta a certeza solitária que lhe restara. O que fazer? Estava num
mato sem cachorro. Toda a conversa com Eldenezir encaixava nos fatos, incluindo
as materializações: o boneco mais moreno, seu marido; a boneca loira, ela.
Unidos pelo pé. Horrorizada, compreendia subitamente a força animal que a
arrastara para os braços daquele homem, em tudo oposto ao que escolheu para
marido. O pior era pensar que não houve justiça dos homens, infernal ou divina
capaz de interromper a trajetória daquele ser monstruoso. Como é que os céus tinham
permitido tamanha barbaridade?
Recordou do
sonho que tivera em Votuporanga e, de repente, a solução lhe veio inteira, simples,
clara como água minando da pedra. Não ia deixar aquele vagabundo estragar tudo,
não de novo. Comprou uma arma, o passo mais simples: tresoitão com numeração
raspada. Achou o ex-namorado nas imediações da rodoviária, levou-lhe uma pedra.
Esperou sentada na guia que ele a fumasse. Fez-lhe a proposta indecente:
ganhava outra depois de um servicinho. Prometeu que pagaria a dívida dele com os
cabeças: os bandidos não iam mais apagá-lo, e assim aquele burro poderia
continuar atrás da única cenoura que ainda o fazia puxar a carroça. O rapaz desempenhou:
abordou o malandro numa viela quando saía do bar, dois tiros no peito e um na
cabeça. Chegou já sem vida ao PS do Ana Costa.
Fim da linha
para o Zé Pilintra. O revólver, atirou-o do alto de uma ribanceira perto do rio
Diana. Adeus papai, adeus sogrão, descanse na paz dos vermes da terra. Bem
feitas as contas, era uma digna filha daquele filho da puta, com a diferença de
que não deixaria rabo atrás de si. Pagou o trafica para ‘descer’ o nóia; menos
um no mundo. Quem liga? Contabilizou seus três crimes: o aborto, o assassinato
do pai e o do zumbi; concluiu que só lhe pesava mesmo o primeiro, abominação
que carregaria pelo resto dos seus dias, uma alma pela qual rezava todas as
noites. No mais, abriria mão de ter filhos, quem sabe convencia o marido a
adotar ― por que não? Mas nada, nem ninguém, a faria desistir da paixão da sua
vida. É muito difícil achar o amor verdadeiro hoje em dia.
Quando o
marido chegou de noite, encontrou-a apertando um chumaço de algodão ensangüentado
sobre o polegar.
― Que foi
isso?
― Um corte de
nada. A carne... estava fazendo a sua sopa, meu bem.
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