Seguindo
religiosamente a ordem das senhas retiradas horas antes, as pessoas se levantam
dos bancos de madeira pintada de verde em silêncio e se aproximam do altar. Ninguém
conseguiu até hoje explicar o mistério das “materializações” que estão prestes
a acontecer diante de todos. A pequena multidão de oitenta consulentes vai se
aglomerando num círculo irregular a meio metro do patamar de alvenaria onde fica
o altar inusual: um tanque raso, uma cadeira de tira de plástico e uma mesinha com
as imagens de Santo Antônio de Pádua, Nossa Senhora do Rosário, Iemanjá e
Arádia, alta sacerdotisa da Antiga Religião.
Carregam
na mão, uma, duas, até quinze sacolas de plástico ― dessas há pouco banidas dos
supermercados ―, que levarão para casa as materializações; no momento, porém,
as sacolinhas contêm apenas algodão em rama e custaram dez reais cada no caixa
da Casa Luz da Aurora. Após nova chamada, os romeiros sobem um a um o patamar e
acercam-se do tanque de noventa centímetros de diâmetro para desfiar o algodão
sobre a água; a superfície fica parecendo um lago juncado de improváveis
icebergs, graças à grelha de arame acoplada na borda que mantém os chumaços à
tona. O filho mais velho da médium (ela tem dez, seis de sangue e quatro
adotivos) rega o algodão com água de mangueira e álcool benzido.
O
sol do começo da tarde derrama sua luz cálida através da porta por onde todos
hão de sair, carregando nos braços as suas desgraças; por enquanto, no salão de
paredes cobertas de frases motivacionais os presentes estão hipnotizados por
aquela mulher de longos cabelos liso-acinzentados totalmente vestida de branco.
É segunda feira, o dia consagrado aos que sofrem de problemas familiares,
Eldenezir Munhoz dirige algumas palavras de boas vindas ao público, emenda um
pai-nosso numa salve-rainha e entra em transe profundo. No momento em que
mergulha os braços na maçaroca branca, um frêmito sacode a platéia; o murmúrio
se eleva, ressoando no teto de telhas de amianto.
No
rosto da vidente transparece uma mescla de compenetração e cansaço, afinal,
este é o seu trabalho há mais de cinco décadas. Eldenezir, conhecida como a
“benzedeira do algodão”, a “médium do algodão”, faz surgir do tanquinho
circular uma cornucópia de objetos que dão forma aos maus pensamentos, energias
ruins e magia negra que todos acumularam ao longo da vida. Ela crava as mãos na
pasta que se adensa, molha-se, macula as vestes alvas diante dos olhos atônitos
dos espectadores; vai puxando de lá ossos de animais, cacos de vidro, fivelas,
bricabraques, panelas, velas coloridas, frascos de perfume, peças íntimas, sapatos,
bonecos de cera de pombas-gira, caveiras e exus de todas as estirpes.
As
mãos vão e vêm, ela faz força; como um escultor que enfrentasse gigantesco
bloco de pedra, os braços parecem lutar para desentranhar a forma do informe, a
matéria dura das felpas pardas. Em menos de meia hora retira dali mais de cem
objetos: uma seleção bizarra que resume as dores, as perdas, as separações, as
traíragens e as angústias que rapinam a alma dos sofredores. O descosido exército
de trastes vai sendo jogado displicentemente por Eldenezir sobre folhas de
jornal dispostas na mesa do altar; um outro ajudante-filho as embrulha e
acondicionadas para a viagem de volta. Com a sacola cheia de suas maldições, o
consulente se retira pela porta lateral ― a mesma por onde entra o sol, que
agora já arrefece seus raios.
Irma
aguarda receosa a sua vez; agora que está quase chegando o número da senha que
tem na mão, hesita. Sente vontade de sair correndo dali, que se dane, já não
lhe importa desperdiçar a longa viagem de ônibus desde Santos até Votuporanga, não
quer mais saber; quer as respostas menos do que teme obtê-las. Procura
distrair-se ouvindo a conversa de um
casal que conheceu na fila.
―
Senti alívio na hora, é impressionante! Foi como se tirasse um peso de dentro ―
ele carrega um osso enorme, talvez de boi, o que significa dificuldades em tudo
que realiza.
―
A gente só leva toba no dia a dia, tudo quase parando, problema financeiro.
Aqui a gente ganha um encorajamento, e tem já que vai dar certo, vencer ― a
mulher recebeu uma corrente, sinal de que a vida está amarrada.
Irma
se recolhe dentro de si, e é então que nasce a sua materialização. Enquanto
desfiava as ramas sobre o tanque, evocara antigas sensações: o frio nevoso da
serra, a sombra voadora dos pássaros, os perfumes do mato dormindo, que se
juntam na brisa por um breve instante e pousam na água. Cada fibra do algodão se
desprendia das suas mãos fazendo vibrar as outras coisas à sua volta, como
partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós, contra a
nossa ignorância sobre aquilo de que somos feitos.
O
veredicto da médium é de que deve ficar para uma consulta individual no dia
seguinte. Vai lhe custar mais cento e vinte pilas, fora a hospedagem numa
pensão. Eldenezir fez questão de não esconder a preocupação com o que saiu para
Irma.
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