No meio da
crucial decisão entre gastar mais na qualidade do aceto blsâmico ou do vinagre,
minha mãe me ligou no supermercado. No meio do dia, assim, do nada?, vem bucha
na certa... Me afastei dos meus pais já faz um bom tempinho, sem palavras nem
esperneio de parte a parte, fixamos cinco datas anuais de visitas protocolares:
aniversários respectivos, dia dos pais e das mães (por insistência do Bernardo)
e Natal. Telefonemas, só quando o rei faz anos.
― Onde você
está?
― No super.
Aconteceu alguma coisa?
― Nada
sério... é que, era melhor você vir pra sua casa agora...
― Você está na
minha casa?! Tô indo.
Era sério.
Desliguei o celular e tudo mais que me rodeava, deixei o carrinho de compras,
saí desabalada da garagem sem validar o ticket de estacionamento. Cheguei na
Granja batendo todos os recordes de velocidade e multas nos radares eletrônicos
da Raposo. A minha mãe me ligando de casa significava encrenca casca grossa.
Assalto, incêndio, furacão, o que poderia ter acontecido pra quebrar regras não
escritas, mas tão zelosamente respeitadas?
Um pandemônio
me aguardava na porta: carros de polícia, furgões de emissoras de TV, curiosos,
cachorros vadios, uma pequena multidão se aglomerava na estreita faixa de
calçada atrapalhando o fluxo de carros na via de mão dupla que corta o
habitualmente sossegado condomínio. Entrei em casa desviando de um agulheiro de
câmeras e microfones transmitindo a confusão ao vivo. Queriam uma declaração
sobre alguma coisa incompreensível. Minha mãe me esperava aflita.
― Que gente
mais sem respeito. Ai, minha filha, isto aqui tá uma confusão!
― O que houve?
Que é que esse povo todo tá fazendo aqui? Por que tem essa faixa amarela interditando
o jardim de casa?
― Senta um
pouco, respira. A polícia prendeu o Beni, estão achando que é ele o Maníaco da
Machadinha... Eu sei, é um absurdo total! Policiais revistaram tudo de cima
abaixo, dizem que acharam a arma do crime... levaram ele pruma delegacia lá no
Centro.
Assim
começaram as vinte e quatro horas mais longas da minha vida. Vivi o inferno na
torre do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa. Pude ver o Beni depois
de quatro horas de chá de cadeira num corredor do quinto andar de um prédio
abafado na rua Brigadeiro Tobias. Ele era mantido sem algemas num cubículo com
dois policiais vigiando cada movimento, cada ida ao banheiro. Delegados
entravam e saíam, e lhe faziam sempre as mesmas perguntas. Estava cansado,
pálido, mas aparentava a sua calma característica. Ostentava a tranqüilidade
dos inocentes, confiava na justiça, repetia que aquilo tudo era um grande mal
entendido que seria esclarecido em breve.
Acreditei nele
imediatamente.
Conheço o
homem que dorme comigo todas as noites, Beni é incapaz de fazer mal a qualquer
ser vivo. Um cara grande e forte, mas que desarma a todos com a gentileza dos
gestos, a candura do olhar, a integridade dos seus ideais. Não, eu não vivi
enganada por um psicopata em pele de monge tibetano, Bernardo Felizardo é uma
dessas criaturas raras da natureza: um urso vegetariano, um panda da paz. Havia
algum engano, um terrível engano.
O doutor
Taborda, advogado e tio do Beni, acompanhava todos os depoimentos, orientava as
declarações, disparava telefonemas para todos os seus contatos, no entanto,
mostrava-se reticente quanto à possibilidade do sobrinho dormir em casa naquela
noite de pesadelo. A situação não estava nada boa: a caminhonete dele tinha
sido filmada nas imediações do último crime atribuído ao psicopata, buscas
autorizadas judicialmente haviam encontrado uma enxada com restos de sangue no
galpão da nossa casa. Naquele momento, a polícia científica realizava testes
para estabelecer a quem pertencia o sangue.
Em que pesasse
toda a influência do doutor Taborda, o desembargador que precisava acordar pra
conceder o habeas corpus não acordou, e o Beni dormiu na carceragem do DHPP,
após ser indiciado pelo assassinato de doze mulheres. Sentia-me exausta,
física, moral e emocionalmente. Vivia um drama sem sentido e sem hora pra
acabar. Às duas da manhã voltei pra casa, precisava de um banho, da minha cama,
algumas horas de recuperação e sanidade. No elevador do prédio, escutei a
conversa de dois investigadores.
― Cê viu a
faccia do jack da enxadinha?
― Vi. Cara de
paisagem, riquinho que se faz de tanso, advogado picão, e o caralho... É aquele
tipo de sonso que os vizinhos saem falando: “nunca poderia imaginar, uma pessoa
tão boa, tão calma...”
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