quarta-feira, 13 de novembro de 2013

os apátridas (1)



Port-Vendres, Pireneus Orientais, França. 25 de setembro de 1940.

            Na minha frente estava um homem de olhos pensativos atrás de óculos grossos aparentando bem mais do que os seus quarenta e oito anos, um menino de quinze e a mãe dele; à nossa frente, uma cadeia de montanhas e horas de escalada íngreme, margeando estradas por onde circulavam patrulhas francesas e alemãs. A Espanha ficava além das escarpas, dali em diante, era o mundo livre. Deveria guiá-los sozinha pela trilha mais a oeste, depois que a Garde Mobile fechara a estrada do cemitério de Cerbères, a passagem mais difícil, a de maior altitude e dificuldade. Eu desconhecia completamente la route de Lister.
            ― Minha senhora, aceite nossas apologias pela inconveniência, o senhor seu marido disse que poderia nos ajudar na travessia para a Espanha...
            ― Ele disse, é? Acho que essa é mesmo uma coisa que ele diria... mas talvez não tenha lhe dito que esta vai ser uma maratona vertical, disse?
            ― Tudo vai ficar bem, espero... que seja seguro. Sou doente cardíaco, teremos de andar devagar. Na viagem de Marseilles para cá, encontrei a senhora Gurland e seu filho. Pode levá-los também, senhora Fittko?
            ― Cardíaco?! Começamos bem... se essas são as boas, agora, as más notícias: primeira, ficamos reduzidos à metade da água e mantimentos; segunda, não sou a melhor guia pra esta região, na verdade, nunca fiz a rota oeste, tudo que tenho é um mapa desenhado de memória pelo prefeito. Topam o risco?
            Todos aceitaram. O maior risco seria esperar, ponderou o professor. O crescente trânsito na fronteira intensificara a vigilância, cada dia era mais perigoso que o anterior. Na guerra vivemos num presente aplastado, de traição, camaradagem, confusão e terror generalizados, sem nenhuma fresta de futuro, os dias nascem únicos, monolíticos, e o amanhã se distancia na bruma das miragens incertas. Não se desperdiçam oportunidades nem tempo, em tempos de guerra.
            Um dia antes estivera em Banyuls-sur-Mer, no gabinete do prefeito. Monsieur Azéma trancou cuidadosamente a sala com duas voltas da chave, para só então descerrar um sorriso de luminosa bonomia mediterrânea. Contou emocionado os lances da passagem usada pelo lendário general Enrique Lister, comandante do exército republicano, a quem dera apoio durante a Guerra Civil. “Ali se lutou pelo mesmo motivo desta guerra: fascismo ou república?”, teorizava o antigo militante socialista. Mostrei-me interessada na possibilidade de haver uma trilha. “Pouco provável, já são mais de três anos sem uso. Veja: as curvas a fazer pelo meio de descampados e áreas cultivadas, até atingir a floresta; dali, siga o riacho a noroeste e chegará à pequena cabana escondida entre urzes e giestas; quando avistar o platô dos sete pinheiros, mantenha-o sempre à direita ou vai cair muito ao norte; finalmente, a vinha que conduz ao ponto certo de atravessar a cadeia de montanhas. Depois do topo, já é a Espanha.”
            Estas instruções, rabiscadas a lápis num papel manchado, me pareciam pouco mais do que os mapas do tesouro das brincadeiras de criança. Mas era este guia que eu apalpava, dobrado no bolso das calças, enquanto reunia meu grupo de falsos camponeses saindo pra trabalhar às cinco horas da manhã. Era um começo de outono seco, o clima prometia calor insano na caminhada e frio na travessia dos picos.
            ― Professor, o senhor foi aliviado de carga, só pra levar essa pasta preta abarrotada de documentos?! Além de se cansar à toa, compõe o pior disfarce de lavrador francês que já vi.
            ― Este é o meu novo manuscrito...
            ― Mas, por que trazê-lo um peso destes na viagem? Veja só, o senhor arqueia com o peso!
            ― Senhora, precisa entender que esta mala é a coisa mais importante para mim. Não posso me arriscar a perdê-la. É o manuscrito que deve ser salvo, ele é muito mais importante do que eu neste momento.


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