quarta-feira, 20 de novembro de 2013

os apátridas (3)



            ― Lisa, você nunca reza? Mamãe está lá dentro, rezando pelo komischer Kauz...
― Hehehe, você tem razão: ele parece mesmo uma coruja. Não, eu não rezo nunca... minto, rezo sim: pra esta loucura em que o mundo mergulhou acabe logo.
― Não consigo dormir, quer que eu fique de guarda?
― Obrigada, José, acho que nenhum de nós vai pregar o olho esta noite.
― O professor me disse que nunca houve uma guerra boa, nem uma paz má...
― Viu só? Não se preocupe, ele é muito inteligente, vai saber se virar.
A cena se gravou feito cicatriz na minha memória. Entre tanta gente que ajudei a escapar, a imagem daquele sujeito franzino no limite das suas forças físicas, e mesmo assim tão agarrado ao seu senso de dever, ficou para sempre em mim. Durante toda aquela noite branca pensei que tinha descoberto uma razão para continuar, havia finalmente um sentido no que eu fazia. Qualquer pessoa vale a pena ser salva de uma morte estúpida e inútil. Como todos os outros, o Velho Benja lutava por salvar a própria pele, a diferença é que, de uma maneira que então apenas intuía, ele o fazia também por nós. Pessoas assim fazem acreditar que a humanidade vale o sacrifício, que a barbárie não terá a palavra final.
Levantamos acampamento antes do sol surgir por trás dos montes; com alguma dificuldade, achamos a pequena trilha ladeada a noroeste pelo rochedo e seguimos, acelerando inconscientemente o passo rumo à clareira, contornando o azinheiro. Lá está ele! Sentado no mesmo lugar, na mesma posição do dia anterior. Sua aparência estava ainda mais amarrotada, a barba por fazer ainda maior, seus olhos de sonhador perdidos como nunca. Atiramo-nos sobre ele num impulso de alegria descoordenada, tropeçávamos uns nos outros, abraçávamos e beijávamos o constrangido intelectual.
Mein schätze, mein liebe Professor, como... como foi...?
― Oh, por favor, não chorem. Estou bem, nada me aconteceu, como podem constatar.
― Sozinho... aqui, ao relento... na noite fria!
― Por pior que seja, o presente é finito, encerrado na esfera do vivido, só a lembrança é sem limites, porque contém a chave para tudo que veio antes e depois. Vamos em frente.
Esquecer e partir. Foi o que fizemos imediatamente, era tudo que fazíamos desde que a praga do conflito descera sobre a Europa, arrastando nossas vidas num turbilhão insensato de sangue e horror.
A subida foi ficando progressivamente íngreme, a trilha, mais e mais interrompida por mato bravo. Mantínhamos a orientação pelo platô dos sete pinheiros à nossa direita. Em certos momentos, a route Lister se aproximava da estrada oficial; antigo passo de contrabandistas, muitas vezes nosso caminho corria encoberto apenas pelo ressalto no bordo da encosta. Acima de nós poucos metros, escutamos soldados do Reich conversando enquanto fumavam numa parada. Prendemos a respiração petrificados, o idioma alemão agora provocava estas reações instintivas de medo.
Enfim, avistamos a vinha que indicava o melhor ponto de travessia da cordilheira. Não havia pista alguma no chão, a inclinação era praticamente vertical; subíamos agarrando as cepas lenhosas, carregadas da uva escura e doce de Banyuls. Pela primeira e única vez, o professor fraquejou, avisando formalmente que a escalada final estava além da sua capacidade. José e eu tomamos o pobre homem nos ombros, carregando a ele e sua bagagem morro acima ― respirava pesadamente, mas não fez uma queixa, nem um suspiro, apenas espreitava minuto a minuto a mala preta.
Quando alcançamos um vale estreito entre os espigões de pedra, paramos para comer. O vento soprava furioso, arrancando o chapéu da senhora Gurland. A água acabara. Comemos pouco, na verdade, ninguém comia muito: primeiro, tinha sido o campo de concentração, depois, o racionamento. Nossos estômagos haviam encolhido, nossos corações, também: estávamos sentados ao lado do esqueleto de um animal, e dois abutres sobrevoavam as nossas cabeças.
Enquanto os outros descansavam, resolvi sair para uma exploração das redondezas. Uma curta volta em meio a rochas escavadas pelo degelo, e então, vi. Lá embaixo, reaparecia o Mediterrâneo: do lado de onde viéramos, a costa francesa, do outro lado, bem à minha frente, o azul do mar da Catalunha. Com o Roussillon atrás, a norte, surgia diante de mim La Côte Vermeille, o mais magnífico arranjo de falésias, morros e vegetação, na qual o outono se divertia exibindo uma paleta luxuriante cobrindo todos os tons de vermelho, ocre, e laranja que existem na imaginação e fora dela. Estava embriagada de beleza e acrodementia, o mal das alturas.
― Se me permite uma citação de Proust, diria que esta é a beleza que nos promete um tipo de felicidade desconhecida, um prazer tão outro, que morremos sem saber que ventura seria essa...
Herr Benjamin, que susto! Não esperava que fosse o primeiro a me alcançar...
― Os Gurland estão vindo já. Senhora, não tenho como agradecê-la suficientemente pelo que fez por nós. É dona de uma grande alma, Fräulein...
― Pare, professor, peço-lhe. Já me fez chorar o que não chorei em meses... Veja ali, uma estrada de verdade! Sigam direto por ela até Port-Bou, têm os visas para atravessar a Espanha e chegar a Portugal, mas isso já está cansado de saber... Não posso me arriscar a ser pega em território espanhol sem visto.
― Adeus, até breve!
― Adeus, vão agora.


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