quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Acumulação primitiva das sombras (#2)


            Uma omertà secreta e muda, de gestos tensos, havia sido pactuada por todos os moradores desde o sucedido: sem se darem conta, esquivavam a mira do olho no olho. Pessoas outrora ajuizadas escutavam com ansiedade as mais simples cortesias, liam-se os lábios, freqüentemente pediam pela terceira vez para repetir um sim ou um não. O mais x era que se adaptavam insensivelmente (a consciência do problema chegava às raias do camaleônico), muito porque, na prática, se podia seguir fazendo o que se fazia antes, não havia necessidade de interromper nem modificar nenhuma atividade.
            Era uma espécie de magia, mas tão terrível, ou tão falsa, como o truque de serrar a assistente do mágico no palco.

            Procuro palavras com a urgência dos tolos.
            Já tinha percebido, é como se você fosse uma metralhadora giratória disparando signos contra o muro das coisas.
            ... quero atingir o que não sei, o que ainda não existe.
            Isso já deve ter acontecido a você, aconteceu comigo, também eu não sei onde vai dar esta história.
            A gente vai vivendo aos rabiscos, jogando nomes ao acaso, iscando e ciscando pra pegar o que está dentro, fora, ou além.
            É um bocado inquietante esse bloco no meio da vila, assim, surgido sabe Deus de onde...
            Não vai dar, não corre o risco de dar certo.
            Você acha?!
            ... as emoções... elas se chocam dentro de nós como os blocos de gelo no mar dos pólos.
            Tudo é a mesma matéria, mas a palavra se choca com a vida, você sabe.
            Alguns viram quando o furgão branco parou na pequena rotatória da bifurcação da estrada, e desceram os dois funcionários uniformizados que abriram as altas portas traseiras. Depois de instaladas rampas de metal na carroceria, um terceiro ajudante desceu de lá num bobcat, despejando junto ao marco do centro um paralelepípedo de dois metros e meio de altura por oitenta de largura. À luz do fim da tarde de outono, aquela geringonça de aço escovado emitia irradiações prismáticas singulares, a ponto das testemunhas divergirem unanimemente sobre a cor das roupas dos homens, a placa do furgão, e até mesmo a direção tomada ao sair da cidade.
            A princípio pensou-se em algum engano, uma entrega equivocada de alguma agência governamental. Ao cabo de uma semana cada agência pública do país havia sido consultada, cada obra em andamento contatada, pesquisas exaustivas em banco de dados ― as respostas invariavelmente negativas iam exasperando o conselho dos munícipes reunidos em sessão permanente. As primeiras desavenças não tardaram. Agremiações políticas rivais fizeram circular teorias abstrusas sobre manobras intimidatórias, conspiratóras, até mesmo derrisórias, com vistas a tumultuar as próximas eleições.
            Porém, as eleições vieram, e o pesadume daquele evento sem explicação continuou a angustiar os corações da comunidade. O estado de emergência se desfizera, mas as bizarrices do objeto permaneciam como um enigma lançado à cara de todos, interpelando-os sem cessar, desafiando a céu aberto. Fosse qual fosse o metal daquele monólito maciço, nenhuma broca sequer arranhava a superfície dele, dois tratores atrelados por correntes não o moveram um centímetro do lugar. Especulações corriam soltas, o padre admoestava nos sermões, multidões vinham em romaria.
            Até que a novidade cansou, os visitantes se foram, e eles voltaram a ficar sozinhos, entregues ao involuntário monumento da própria afronta. Foi uma criança da vila que descobriu a inscrição em baixo relevo numa das faces do troço reluzente:
            “Nothing Box”.


Nenhum comentário:

Postar um comentário