Por
mais que eu tenha ensaiado com os músicos, ficado duas, até três horas, na
passagem do som, no ajuste dos retornos, testando cabos e caixas, combinando as
marcações com o hold, ainda estranho esse momento de vácuo: as conversas
cessam, as luzes baixam, chega a hora de entrar em cena. A hora da estrela.
Aí
não contam a tarimba, os anos de estrada, aí o que vale é ter estômago, o ponto
exato que concentra todo o espaço à minha volta. Apenas um aperto naquele lugar
indeciso onde termina o peito e começa a barriga, no entanto, a partir deste nó
de tripas vem a alma até o meu gogó e faz o cântaro cantar.
Quando
piso no palco, somem os desvãos, os enganos, todo o medo de ser ― cada canção é
um porto, uma porta, um parto, e uma partida. Tenho de me esfoliar, deixar de ouvir
a mim mesma, simplesmente ignorar e fluir, voltar ao clímax do começo do mundo.
As metamorfoses da vida são incontáveis, sequer vale a pena tentar
entendê-las... Há que entrar.
Fixo-me num
olhar, numa pessoa. E basta um sorriso para ficar gravado a todo sempre. Basta
um anônimo escondido por óculos de hastes de acetato, eis que o demônio da
imagem prega na minha memória. Sofro de um tipo de memória, ao que me consta,
afeita a se apegar livremente.
Encaro
ligeiramente vesga o microfone, respiro, mergulho em queda livre para o alto,
na direção do túnel prateado que despejam os holofotes e canhões de luz. Uma
viagem desde o início da minha carreira até o agora, que é o presente, mas o
presente reconstruído inteiramente no seu pretérito explicado, algo assim como
o tempo verbal do tempo.
A
verdade está em nós sem ser dita, a dor não pensa. Muitas vezes, culpa-se o
próximo pela infelicidade que nós mesmos trouxemos para dentro de casa;
freqüentemente, inserimos a própria história nas entrelinhas do que outros
escreveram. Fantasmagorias truncam o radar da realidade: ouvimos o que não está
na partitura, lemos além do que foi escrito, projetamos frustrações, desejos, e
esperanças na tela de smartphones. As brigas com ela, cada vez mais feias,
agora acontecem todos os dias.
―
A minha vontade era rasgar a sua bíblia e o seu véu de beata em mil pedacinhos!
―
Já não é o bastante interromper os meus salmos com Darwin, Dawkins, pontos de
macumba e gargalhadas forçadas?
―
Será que é tão difícil perceber o puro sadismo da sua atitude?
―
E por quê? Só porque ouso querer atingir a paz em meio ao caos? Parece que isso
te incomoda demais...
―Me
pergunto, vez e sempre, como isso pode ser: tragédia em cima de tragédia, e
você ali, ajoelhada, rezando.
―
Ninguém se importa, porra! Todos estão inseguros e tudo sussa, o mundo
acontecendo e ninguém se ligando no movimento. Eu tenho fé por nós duas.
―
Na época, acreditei que a sua fé vinha da persistência, e através dela, a sua
persistência, voltei aos bancos de madeira, às novenas, aos rituais.
―
Você nem sabia ao certo o que estava fazendo, mas voltou. Voltamos...
―
Não é isso, não, é justo o contrário... Como é que você, musicista, cantora,
compositora, pode ficar tão apegada àquilo que não funciona mais?
―
É esse seu trabalho solo,. está lhe subindo à cabeça, a sua nova melhor amiga
pra sempre encheu você de sonhos loucos...
―
Que bom que ainda posso sonhar loucamente! Talvez seja porque estou viva, ao
contrário de você, meu bem.
―
Ontem, meu bem, contei até cem, hoje já nem sei... Escuta, o nome vai ser esse
mesmo?...
―
Sim. É disso que se trata: o que vim fazer aqui.
Acontece
que nunca mais voltamos às boas, aos bons e velhos tempos, a relação estava
bastante desgastada. Claro, “relação desgastada” é um dos mais sórdidos clichês
de fim de caso, no game over do amor nem sempre primamos pela originalidade ―
e, menos ainda, pela suavidade ou clareza de propósitos.
Neste
último quesito, porém, estou tranqüila sobre o que devo fazer: vou seqüestrá-la
e dar um fim nela, a outra, a mais velha das duas. Estou cada vez mais certa de
que só assim vou ter sossego.
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