Noite
de lançamento do novo disco, a sala de espetáculos lotada, alto verão no Rio de
Janeiro. Na platéia, políticos, artistas, amigos e personalidades trocam
abraços, sorrisos, posam para selfies. Se a longa carreira de Alda Espinosa não
lhe valera sucesso popular nem estabilidade financeira, ficava patente que ao
menos obtivera o reconhecimento de uma geração: a apoteose merecida e tardia de
uma artista completa. Todos ali tinham vindo testemunhar seu carinho à
compositora de tantas canções fundamentais da trilha sonora de suas vidas.
Ela
falava diretamente ao tempo, e como Nana Caymmi, podia responder que se ele
aprisiona, eu liberto, que o tempo adormece as paixões, eu desperto. Alda podia
até esquecer, mas já não seria esquecida. Pela primeira vez ela tinha uma
produtora ninja, Anna negociara tudo: captação de recursos, gravação, mixagem,
shows, entrevistas para rádio e televisão, notas em colunas especializadas,
canções gravadas por artistas consagrados, etc.. Anna, uma dessas amigas que
pareciam ter nascido no seu jardim, um ser elemental, poesia e pragmatismo;
Alda e Anna, uma parceria genial e óbvia.
―
Um, dois... um, dois, três...
A
bateria e o baixo entraram, logo a seguir, as guitarras. A voz esperava na
garganta da cantora, pausada, traindo a vacilação de não ser nada, nem sequer
música, apenas um esforço de som. Por um momento deu a impressão de uma máquina
posta em marcha após milênios de inatividade, como se atravessasse toda a
história para ser ouvida. Para fazer música não são necessários instrumentos,
intérpretes, partituras, teoria, teatro, público... a única coisa realmente
necessária é a música. O auditório captou o mistério de pronto: era uma
oferenda, um regalo de arte e uma mensagem. Sobretudo uma mensagem. Não se
tratava do pop redondinho do rádio, havia ali melodias sofisticadas, pouco
óbvias, toda uma região de ritmos distante do muzak dos elevadores e pegpagues
da vida. A harmonia parecia combater a si mesma, num afã insensato de exprimir-se,
de dizer coisas estranhas, nunca ditas antes, e essa vontade se disseminava
além do razoável. Todo mundo sabe que há coisas que não podem ser ditas com
palavras, o que ninguém sabe é quais coisas são essas. Havia invenção e risco
nas divisões, aparições e sumiços na clara obscuridade do palco, os
amplificadores funcionavam como a caixa preta surrealista: de um lado, entrava o
inesperado, do outro, surgia qualquer coisa. As frases se repetiam segundo a
casualidade do metro, cadências e células rítmicas avançavam independentes,
criando séries abertas como as coleções de selos. Excessivo esforço se
despendia para lograr um efeito minúsculo, o menor e mais significativo de
todos: a comunicação. As diversas unidades e medidas se recuperavam no
artístico do gesto, no meio da levada dançante pressentia-se uma dinâmica de intenções,
que ora se economizavam voltando-se sobre si próprias, ora se transmutavam em
pura emissão de energia. A forma que tomava este mecanismo de excesso-carência
autoconstituía sua expressão vital, mas tudo isto ainda era apenas preliminar à
canção, a concertista, de olhos fechados, tateava delicadamente os contornos de
um continente desconhecido.
O
público aplaudiu de pé por dez minutos ao final do segundo bis.
Alda
ainda se recuperava no camarim quando Anna confirmou que ele tinha vindo.
Aquele momento de se livrar da pele que usava no palco parecia-lhe o despertar
de um sono de pedra; sempre se perguntava, enquanto reassumia os pensamentos, a
postura e a voz da sua persona comum, como é que se acaba por voltar à mesma
identidade entre tantas possíveis.
Entrou
em choque, lá fora, em pessoa, aguardava Caetano Veloso.
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