sábado, 22 de março de 2014

O seqüestro de Alda Espinosa (#2)




            Noite de lançamento do novo disco, a sala de espetáculos lotada, alto verão no Rio de Janeiro. Na platéia, políticos, artistas, amigos e personalidades trocam abraços, sorrisos, posam para selfies. Se a longa carreira de Alda Espinosa não lhe valera sucesso popular nem estabilidade financeira, ficava patente que ao menos obtivera o reconhecimento de uma geração: a apoteose merecida e tardia de uma artista completa. Todos ali tinham vindo testemunhar seu carinho à compositora de tantas canções fundamentais da trilha sonora de suas vidas.
            Ela falava diretamente ao tempo, e como Nana Caymmi, podia responder que se ele aprisiona, eu liberto, que o tempo adormece as paixões, eu desperto. Alda podia até esquecer, mas já não seria esquecida. Pela primeira vez ela tinha uma produtora ninja, Anna negociara tudo: captação de recursos, gravação, mixagem, shows, entrevistas para rádio e televisão, notas em colunas especializadas, canções gravadas por artistas consagrados, etc.. Anna, uma dessas amigas que pareciam ter nascido no seu jardim, um ser elemental, poesia e pragmatismo; Alda e Anna, uma parceria genial e óbvia.
            ― Um, dois... um, dois, três...
            A bateria e o baixo entraram, logo a seguir, as guitarras. A voz esperava na garganta da cantora, pausada, traindo a vacilação de não ser nada, nem sequer música, apenas um esforço de som. Por um momento deu a impressão de uma máquina posta em marcha após milênios de inatividade, como se atravessasse toda a história para ser ouvida. Para fazer música não são necessários instrumentos, intérpretes, partituras, teoria, teatro, público... a única coisa realmente necessária é a música. O auditório captou o mistério de pronto: era uma oferenda, um regalo de arte e uma mensagem. Sobretudo uma mensagem. Não se tratava do pop redondinho do rádio, havia ali melodias sofisticadas, pouco óbvias, toda uma região de ritmos distante do muzak dos elevadores e pegpagues da vida. A harmonia parecia combater a si mesma, num afã insensato de exprimir-se, de dizer coisas estranhas, nunca ditas antes, e essa vontade se disseminava além do razoável. Todo mundo sabe que há coisas que não podem ser ditas com palavras, o que ninguém sabe é quais coisas são essas. Havia invenção e risco nas divisões, aparições e sumiços na clara obscuridade do palco, os amplificadores funcionavam como a caixa preta surrealista: de um lado, entrava o inesperado, do outro, surgia qualquer coisa. As frases se repetiam segundo a casualidade do metro, cadências e células rítmicas avançavam independentes, criando séries abertas como as coleções de selos. Excessivo esforço se despendia para lograr um efeito minúsculo, o menor e mais significativo de todos: a comunicação. As diversas unidades e medidas se recuperavam no artístico do gesto, no meio da levada dançante pressentia-se uma dinâmica de intenções, que ora se economizavam voltando-se sobre si próprias, ora se transmutavam em pura emissão de energia. A forma que tomava este mecanismo de excesso-carência autoconstituía sua expressão vital, mas tudo isto ainda era apenas preliminar à canção, a concertista, de olhos fechados, tateava delicadamente os contornos de um continente desconhecido.
            O público aplaudiu de pé por dez minutos ao final do segundo bis.
            Alda ainda se recuperava no camarim quando Anna confirmou que ele tinha vindo. Aquele momento de se livrar da pele que usava no palco parecia-lhe o despertar de um sono de pedra; sempre se perguntava, enquanto reassumia os pensamentos, a postura e a voz da sua persona comum, como é que se acaba por voltar à mesma identidade entre tantas possíveis.
            Entrou em choque, lá fora, em pessoa, aguardava Caetano Veloso.

            

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