Se a minha
família não fosse meio detraqué, as coisas jamais teriam sido o mamão com
açúcar que foram então. Contei a história dela em casa, argumentei mil vezes, enchi
os picuás, falei mais que o homem da cobra, e acabou que convenci a todos da
necessidade de adotar uma órfã de doze anos criada numa zona de meretrício.
Estou
certo de que, se houvesse homem na casa, nada disso seria possível. É como
dizem as minhas mães, “homem é homem”. Isso mesmo: as minhas mães ― fui criado
por duas mulheres, a minha mãe e a companheira dela. Durante muito tempo só me
conheciam na escola como o Filho das Sapas. Do meu ponto de vista tudo era
normalíssimo, desde que me conhecia por gente, havia mamãe e mãe Dila.
A
incorporação da Raquel na família, por outro lado, diminuiu a discriminação
sobre nós. Essas histórias envolvendo adoção, órfãs tiradas de puteiro,
costumam amolecer o coração do nosso povo tão cordato e tolerante. Algumas
vizinhas, as mesmas que antes mudavam de fila no supermercado quando nos viam,
agora se aproximavam solícitas, talvez na esperança secreta de que a filha
adotiva pintasse a vida das duas mulheres de todas as cores. Principalmente
negra.
Que
nada.
Aquela
songa-monga seria o menos indicado dos seres humanos pra infernizar a vida de
alguém: silenciosa, refolhuda, engolfada dentro das suas próprias e insondáveis
brumas, continuava na mesma toada vagante em que a conheci. Um saco plástico
vazio arrastado ao sabor da ventania. Se antes aguentava inerte a rotina
brutalizante dos serviços domésticos na zona, transplantada para um lar da
classe média baixa, conservava a mesma atitude neutra agora que ia à escola e
mãe Dila lhe presenteava vestidos, maquiagem e balangandãs.
Raquel
parecia não tomar nunca posse de nada, talvez com medo de que, como tantas
vezes antes, lhe fosse subitamente tirado. A desgraceira suficiente pra sete
encarnações lhe ensinara a lição do fogo: desacreditar em definitivos. Vivia
conosco como se a título de hóspede permanente, sombra doméstica movente e
reconfortante. Nunca a ouvi reclamar do que fosse, nunca um suspiro, um
palavrão.
Depois
que “papai” comeu e caiu fora, Dila ocupou o lugar do macho provedor na vida e
na casa de mamãe, onde já moravam a minha avó e uma tia idosa. Minha mãe
cuidava da casa e das velhas, eu fazia bico de motoboy e estudava. Uns anos
após a chegada da minha irmã é que as coisas começaram a mudar. Eu estava no
fim do colegial e comecei a entender que não ia conseguir, e também não ia
adiantar, fazer faculdade. Trabalho com informática, uma das poucas coisas
neste mundo em que o que você precisa pra se desenvolver não está escondido nas
universidades, tá por aí, acessível a quem tiver saco de aprender.
Eu
tinha. Tornei-me programador e montei minha empresa de serviços, cresci, abri
meu escritório numa parte da cidade em que os traficantes não mandam no bairro
e a milícia não chega atirando em pobre. Tinha ultrapassado os vinte anos e
enxergava um futuro de conquistas à minha frente. Em primeiro lugar, tiraria a
família daquele buraco. Tudo certo, só faltou combinar com os russos.
Foi
nessa época que tive um sonho impressionante. Estou num pavilhão envidraçado
com um buraco no meio. O buraco tem quilômetros de profundidade, microfones
gravam o ruído que vem do fundo da Terra e o barulho fica reverberando nas
paredes transparentes do pavilhão. Pergunto-me se aquele é o som da origem do
universo, terrivelmente grave e estranho. Só sentando no chão pra entender. Mas
aí já não é o mesmo lugar, é uma clareira no meio da mata fechada, à minha
frente vejo uma estrutura de aço, espelhada, um labirinto. Por fora, as paredes
refletem a vegetação ao redor, por dentro, texturas imitam raízes, folhas,
troncos. O tempo todo ouço um barulho de água. E, bem no centro da coisa,
depois de percorrer corredores, alguns sem saída, voltar, entrar de novo, cheguei
a uma bomba d'água.
Grandes mudanças, muitas vezes, são
anunciadas por pequenas alterações. A maneira como percebi que havia gato na
tuba foi por meio da Raquel: de repente, numa bela tarde de domingo, a
cara-de-coió resolveu que não ia dar mais pra mim. Assim, do nada.
— Quero mais não, isso num tá certo.
— E quem disse que você dá pitaco?
Tá bem louca, tá afim de levar umas piaba sua rameira?
Dei-lhe uns cascudos, mas não
adiantou. Obstinou-se naquilo, não ia abrir as pernas, o cu, a boca, nem nenhum
orifício que pudesse satisfazer minha precisão. Durante anos não teve erro,
comi a esquilinha sem sustos; na miúda, pra não escandalizar a família, mas
sempre que necessitei e quis. Afinal, homem é homem.
Quando contei sobre ela às minhas
mães, escondi o fato de que a obriguei a dar uma metida, paga com a promessa de
tirá-la da zona. Com ela em casa, achei que seria um desperdício não continuar aproveitando
o silêncio cúmplice da mudinha. E agora, isso. Uma vagabunda que não tinha onde
cair morta, cheia de querer ser.
Baita de uma mal agradecida.
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