domingo, 1 de junho de 2014

como conheci minha irmã (2)



Se a minha família não fosse meio detraqué, as coisas jamais teriam sido o mamão com açúcar que foram então. Contei a história dela em casa, argumentei mil vezes, enchi os picuás, falei mais que o homem da cobra, e acabou que convenci a todos da necessidade de adotar uma órfã de doze anos criada numa zona de meretrício.
            Estou certo de que, se houvesse homem na casa, nada disso seria possível. É como dizem as minhas mães, “homem é homem”. Isso mesmo: as minhas mães ― fui criado por duas mulheres, a minha mãe e a companheira dela. Durante muito tempo só me conheciam na escola como o Filho das Sapas. Do meu ponto de vista tudo era normalíssimo, desde que me conhecia por gente, havia mamãe e mãe Dila.
            A incorporação da Raquel na família, por outro lado, diminuiu a discriminação sobre nós. Essas histórias envolvendo adoção, órfãs tiradas de puteiro, costumam amolecer o coração do nosso povo tão cordato e tolerante. Algumas vizinhas, as mesmas que antes mudavam de fila no supermercado quando nos viam, agora se aproximavam solícitas, talvez na esperança secreta de que a filha adotiva pintasse a vida das duas mulheres de todas as cores. Principalmente negra.
            Que nada.
            Aquela songa-monga seria o menos indicado dos seres humanos pra infernizar a vida de alguém: silenciosa, refolhuda, engolfada dentro das suas próprias e insondáveis brumas, continuava na mesma toada vagante em que a conheci. Um saco plástico vazio arrastado ao sabor da ventania. Se antes aguentava inerte a rotina brutalizante dos serviços domésticos na zona, transplantada para um lar da classe média baixa, conservava a mesma atitude neutra agora que ia à escola e mãe Dila lhe presenteava vestidos, maquiagem e balangandãs.
            Raquel parecia não tomar nunca posse de nada, talvez com medo de que, como tantas vezes antes, lhe fosse subitamente tirado. A desgraceira suficiente pra sete encarnações lhe ensinara a lição do fogo: desacreditar em definitivos. Vivia conosco como se a título de hóspede permanente, sombra doméstica movente e reconfortante. Nunca a ouvi reclamar do que fosse, nunca um suspiro, um palavrão.
            Depois que “papai” comeu e caiu fora, Dila ocupou o lugar do macho provedor na vida e na casa de mamãe, onde já moravam a minha avó e uma tia idosa. Minha mãe cuidava da casa e das velhas, eu fazia bico de motoboy e estudava. Uns anos após a chegada da minha irmã é que as coisas começaram a mudar. Eu estava no fim do colegial e comecei a entender que não ia conseguir, e também não ia adiantar, fazer faculdade. Trabalho com informática, uma das poucas coisas neste mundo em que o que você precisa pra se desenvolver não está escondido nas universidades, tá por aí, acessível a quem tiver saco de aprender.
            Eu tinha. Tornei-me programador e montei minha empresa de serviços, cresci, abri meu escritório numa parte da cidade em que os traficantes não mandam no bairro e a milícia não chega atirando em pobre. Tinha ultrapassado os vinte anos e enxergava um futuro de conquistas à minha frente. Em primeiro lugar, tiraria a família daquele buraco. Tudo certo, só faltou combinar com os russos.
            Foi nessa época que tive um sonho impressionante. Estou num pavilhão envidraçado com um buraco no meio. O buraco tem quilômetros de profundidade, microfones gravam o ruído que vem do fundo da Terra e o barulho fica reverberando nas paredes transparentes do pavilhão. Pergunto-me se aquele é o som da origem do universo, terrivelmente grave e estranho. Só sentando no chão pra entender. Mas aí já não é o mesmo lugar, é uma clareira no meio da mata fechada, à minha frente vejo uma estrutura de aço, espelhada, um labirinto. Por fora, as paredes refletem a vegetação ao redor, por dentro, texturas imitam raízes, folhas, troncos. O tempo todo ouço um barulho de água. E, bem no centro da coisa, depois de percorrer corredores, alguns sem saída, voltar, entrar de novo, cheguei a uma bomba d'água.
            Grandes mudanças, muitas vezes, são anunciadas por pequenas alterações. A maneira como percebi que havia gato na tuba foi por meio da Raquel: de repente, numa bela tarde de domingo, a cara-de-coió resolveu que não ia dar mais pra mim. Assim, do nada.
            — Quero mais não, isso num tá certo.
            — E quem disse que você dá pitaco? Tá bem louca, tá afim de levar umas piaba sua rameira?
            Dei-lhe uns cascudos, mas não adiantou. Obstinou-se naquilo, não ia abrir as pernas, o cu, a boca, nem nenhum orifício que pudesse satisfazer minha precisão. Durante anos não teve erro, comi a esquilinha sem sustos; na miúda, pra não escandalizar a família, mas sempre que necessitei e quis. Afinal, homem é homem.
            Quando contei sobre ela às minhas mães, escondi o fato de que a obriguei a dar uma metida, paga com a promessa de tirá-la da zona. Com ela em casa, achei que seria um desperdício não continuar aproveitando o silêncio cúmplice da mudinha. E agora, isso. Uma vagabunda que não tinha onde cair morta, cheia de querer ser.
            Baita de uma mal agradecida.
           
            

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