―
Pra você, tudo é muito simples, se é pra defender seus interesses, você vai pra
cima de quem for. A lei me dá direitos pelos anos que estamos juntas, e
moralmente sua mãe reconhece, pus pão e leite nesta casa sozinha enquanto você
crescia... ― Dila começava a abaixar a máscara. Prefiro.
―
Não acredito que vai permitir esse absurdo ― encarei minha mãe duramente, ela
escondeu o rosto no lenço ― A casa da praia foi construída com o suor dos seus
pais, você não vai nem esperar a vó morrer pra fazer essa loucura?
―
Entenda, meu bem, a vida não é fácil, a Dila foi muito legal com você, a Raquel...
e comigo... ― recaiu no chororô.
―
Quem não está entendendo é você, mãe, mais uma vez estão se aproveitando da
senhora. E desta vez com o seu de acordo! Que mais vai ser? Ela leva também os
móveis, a máquina de lavar, a TV, as samambaias?
―
Tudo tem que virar uma discussão sobre coisas materiais?, há bem mais aqui pra
resolver do que dinheiro, bens, tem o lado humano, da convivência...
―
Lado quê?! Só o que eu estou vendo é você adiantar o seu lado, Edilamar. Você
quer levar na maciota, dar a coisa por fato consumado, e fica nesse
quas-quas-quas de lado humano, mas na real está se crescendo pra cima de uma
pessoa que cuida de duas velhinhas!
.― Sabe,
rapaz, às vezes fico tão feliz de te ver crescendo na vida, justificando todo o
sacrifício que fizemos por você, mas outras eu me pergunto que tipo homem está
se tornando.
― Quer saber
mesmo, Dila? A única coisa que cai do céu de graça é chuva. Sou o tipo de cara
que não gosta nada, nada, que façam ele de otário. Morou? ― o tom, entre
condescendente e cínico, daquela a quem já havia chamado de mãe Dila começava a
me tirar do sério.
― Hã-hãm... ― minha
irmã pausou o bate boca durante escassos segundos, suficientes para dispersar o
clima. Ficou por aí.
― São
combinações que já estão acertadas, querido, melhor agir com a cabeça nessas
horas. O casamento acaba, mas a família continua... ― mamãe conseguia terminar
de me irritar passando o pano praquela velhaca.
― Há um
detalhe ― neste ponto ela voltou o rosto na direção da mudinha ― a Raquel vai
ficar comigo.
Ninguém
conseguiu falar durante um bom bocado, apenas ficamos ali, comendo mosca na
sala povoada de dores passadas e presentes. Naqueles minutos imensos de tédio enraivecido,
senti a passagem de uma presença: o rio subterrâneo que corre pelos porões da
imaginação, e que, no entanto, determina todo o relevo da nossa vida de
superfície. Os quatro se levantaram. Depois, sentamos novamente, mudando uma posição
no sentido anti-horário. Raquel arrastou levemente o sofá de um lugar ficando
mais próxima a Dila.
― Então é
assim que a família continua, dividida ao meio?! Abre o olho, mamis, a bola nas
costas que você tomou é dupla!
― Escuta aqui,
cansei das suas provocações. Você espreme tudo e todos que encontra, o
resultado disso é que perde o limão, a limonada, e no fim só há bagaço à sua
volta. Onde você pisa nem erva daninha cresce.
― Tá de boa,
né Dila?, aposentou pelo estado e pela prefeitura, dá uma reformada lá em
Mongaguá, e pronto, cama, mesa, banho e roupa lavada. Sensacional essa sua
mentalidade de funça, amarrou o jegue na sombra, aí é só correr pro abraço. Na
manha do gato.
― Como te dói
saber que dependeu de mim durante tanto tempo, né moleque? Você ainda vai ter
uma pilha de grana, mas nada poderá apaziguar esse bicho que carrega aí dentro.
― Aí, até é
bom você e a mongolóide saltarem fora, vocês não pertencem mesmo, têm cabeça de
pobre. E pobre é igual a lombriga, quando sai da merda, morre.
― Olha como
fala, seu... !
― Acha que não
sou capaz de te dar uns tapas por causa da Maria da Penha?
― Que é que
você quis dizer com traição em dobro? ― minha mãe parecia voltar de um transe, o
olhar distante gradualmente se focando.
― Ainda não se
ligou, não? Bem debaixo das nossas barbas, quem me cantou a pedra foi o P2 que
mandei seguir essa daí. As duas já até andaram de mão dada em Mongaguá, se
pegam dentro do carro. Não botei uma fé quando ouvi.
― Tá
dizendo... quer dizer que a Raquel, a Dila...?
― Estou te
dizendo que a sua querida Edilamar é uma porra de um Woody Allen, criou pra
comer.
― O mesmo fez você.
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