O ódio é o
irmão mais velho do amor.
Sempre pregara
que, sob condições de exceção, prevaleceria o primogênito sobre o caçula, mas
só nos mais turvos cenários distópicos imaginara a guerra de todos contra todos
que testemunhava abismado.
Pode ser que
tenham existido conflitos que mobilizaram somente a destruição “necessária”,
por exemplo, o mínimo de agressividade implicado na defesa de si mesmo. O que
se via era uma explosão de violência ilimitada, racismo, xenofobia,
assassinatos aleatórios, estupros, destruição de monumentos e habitações,
tortura, assaltos e violações de todo tipo.
Um Carnaval do
Mal. Fora de época e de controle.
Afetos de ódio
extremamente potentes se desencadeavam materializando a fúria indiscriminada de
um dragão de sete bilhões de cabeças. O blecaute atingira todo o planeta, e
ninguém, na internet congestionada, sabia explicar a razão de tantos sistemas
independentes caírem ao mesmo tempo em todos os lugares.
Passadas cinco
horas sem luz, caiu a internet. Os celulares já estavam mudos a essa altura. No breaks, baterias e geradores
responsáveis pelos backbones dos
grandes servidores foram rapidamente consumidos pelo estado de
hiperconectividade que seguiu imediatamente ao apagão.
A
desorientação, por incrível que pareça, piorou ante a falta de transparência
dos exércitos e das instituições de defesa: naquela emergência global, os
militares pareciam mais preocupados em proteger armas e instalações nucleares
do que em atender a população aflita.
Uma segunda
feira que escoava modorrenta e trabalhosa como as outras, até quinze minutos
depois das três da tarde. O que teria causado aquilo? Algum vírus de redes de
geração e distribuição de energia? Uma tempestade solar?
Aconselhou o
namorado da filha a desligar o telefone para poupar a bateria, iam necessitar
do GPS para achar a trilha no escuro. Instintivamente, consultou o velocímetro:
faltavam os derradeiros quilômetros que os separavam da chácara, a maioria
deles numa estrada de terra que subia acentuadamente na parte final.
“Quanto ainda
falta?”
“Treze. Dá uma
boa golada no seu squeeze, você tá bem cansado... mas não podemos parar agora,
no nosso sítio estaremos em segurança.”
“Pai...”
“Que foi?”
“As pessoas
são... assim?!”
“Bom, elas
ficam assim nas grandes calamidades...”
“Mas é que,
não entendo...”
“Você sempre
me ouviu dizer que existem apenas duas categorias de indivíduos, os que são
maus e os que são muito maus...”
“... mas nós
chegamos a um acordo e chamamos os maus de bons, e os muito maus de maus. Eu
sei.”
“Me desculpe.”
“Pelo quê?”
“Por ter
trazido você pra este mundo. Você merecia outra coisa.”
O menino não
compreendia. Onze anos só. Não era uma boa idade pra rasgar os véus da ilusão e
ser apresentado de forma tão crua à crueldade, ao medo e à estupidez que
emergem no ser humano quando as instituições portadoras do sentido derretem.
Não
compreendia, sobretudo, a gratuidade.
Aconteceu
quando saíam de casa. Ele escutou um assobio, parou de pedalar pra ver quem
chamava. Olhou pra trás e viu um rapaz magro, de cabeça baixa, usando uma camiseta
surrada e um boné que lhe cobria os olhos.
Quando viu a
faca na mão, o desconhecido já estava a um metro. O garoto tentou sair com a
bicicleta, virou-se de lado rapidamente, e sentiu uma ardência terrível na
barriga. Como uma ferida mergulhada na salmoura.
Viu a faca
cair no chão: era de cozinha, daquelas pequenas, serrilhadas. O estranho não
tentou roubar nada, nem mesmo a bicicleta. Só queria machucá-lo.
Olhou nos
olhos do agressor, não havia dor, não havia raiva.
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