Em nossa casa
havia muitos livros em prateleiras que alcançavam o teto, raros tinham o dom de
interessar-me. Meu pai costumava trazer para casa grandes livros negros com
lombadas de pano ― livros-caixa, anuários, registros de fretes e notas fiscais
― e passava as noites em silenciosos trabalhos de contabilidade. Eu deixava-me
ficar ao seu lado na mesa da sala de jantar, e terminava sempre dormindo, a
cabeça apoiada no vértice superior do triângulo formado pelo braço direito.
À meia noite,
ele interrompia as contas e cálculos, fechava os livros, armava-se de um
revólver, e saía sob o céu estrelado para dar três voltas de corrente no
cadeado do portão. Vez por outra, era despertado pelo tiro para o alto que ele
costumava dar de aviso aos ladrões ― os gatunos desafiavam a vigilância dos
cachorros Dito e Zorro, vezeiros em roubar galinhas do quintal dos fundos.
Quase nunca
encontrava o que queria nas estantes abarrotadas. Lembro do The Story of the Romans, de H. A.
Guerber, da Geografia Ilustrada do Brasil
de Borges dos Reis, livro cuja maior atração eram os mapas coloridos, além
de inúmeras obras sobre direito e leis, que não diziam nada a quem vivia à cata
de histórias de fadas, relatos de aventuras, mistérios e crimes. Muito
raramente, Florencinho, meu primo, trazia exemplares do Tico-Tico e folhetos do Nick
Carter.
Em revistas
antigas, como Eu sei tudo,
encontradas na casa de tia Dora, mãe do Florencinho, eu agarrava novos retalhos
desse mundo evanescente. Isolava-me, lia, e as fotografias em sépia, cor de
cinema, ampliavam ainda mais o milagre daquelas páginas. Uma constelação de
palavras encantadas fulgia na minha infância gris, além dos galhos floridos da
paisagem, no claro do céu azul, embaixo do sol grande. Eram palavras azuis como
o anil das lavadeiras, navios brancos, iguais às nuvens boiando acima dos
negros anuns em revoada.
Swaíli, Bessarábia,
Guatemala, Mississipi, Tasmânia, Macunaíma, Pajuçara, Fernão Velho, Trapiche da
Barra, Ponta da Terra.
Mas não havia
nome para tudo. Nomes de lugares, nomes de pessoas, nomes de nomes, palavras sem
pele, despojadas de toda a sua carga de história, mais figura que acervo,
catálogos do aleatório, índices de chuva e pedra, efígies abstratas. As coisas
tinham nomes, mas que nome poderia eu dar a certo momento veludoso e odorante, ao
minuto em que só havia maresia e gaivotas no ar, as notas distantes do piano de
vovó, a assuada dos moleques em torno do quebra-pote nas tardes de domingo? Um
dia seria preciso, adivinhava, inventar palavras, seguir as indicações perdidas
do velho mapa dos piratas para desenterrar do sótão a arca empoeirada, e,
então, retirar dela amorosamente o inestimável tesouro do novo.
Na ganga bruta
daqueles tempos nímios se aderiu um nome, Sezefredo Taveira, morava na rua do
Farol, no final, onde o bonde fazia a curva de volta para o centro. Os muros
brancos cercando o quarteirão semi-escondiam o sobrado, também branco, que
aparecia por entre as grades e as pinhas do portão. O palacete branco exalava
riqueza, luxo, secretos esplendores. Além dos balcões fechados, mudas
venezianas e sacadas, impregnado nas estatuetas de mármore espalhadas pelo jardim
musguento, daquele universo de opulência e finos azulejos transudava
constantemente o perfume do rosmaninho, das dálias e do jasmim em flor.
Era o palácio
de Sezefredo Taveira. E esse nome, ao qual sou incapaz de ligar um rosto, uma
pessoa, ocupou toda a minha infância com a sua magia, era o preâmbulo das
encantações, demorava-se no meu peito como uma bolha de sabão, para se
estilhaçar em solfejos no ar eternamente perfumado pelo Oceano. E assim
Sezefredo Taveira era apenas um nome: a belíssima sonoridade de um caco de
mitologia, uma flor alienígena que, no lugar de pétalas, possuía sílabas.
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