Nem eu me
conheço. Os outros?, só imagino. Cada vez mais me pergunto se deveras aprendi algo
com o passar dos anos, e cada vez menos dou por fato consumado as respostas,
parcas, que recolho sem método aqui e ali. O mundão é grande e sem porteiras,
só a beleza nos salva. Descobri que não é necessário acreditar no belo para ser
vítima dele, pois o arrebatamento vem como os terremotos: não respeita feriado
ou dia santo, e nem há onde se esconder. Tentar não, fazendo ou deixando de
fazer, tentativa não há. Fugir do mundo não protege de quase nada, a não ser do
pior e do melhor ― justamente as coisas mais importantes da vida.
As etiquetas e
as palavras falham. Devemos desconfiar delas como das verdades reveladas,
palavras servem se pensarmos nelas como meras estações de um trem sem parada,
nas quais a ignorância pousa brevemente o segredo que a língua vela e descobre.
Livrar-se do que excede, livrar-se de si mesmo e permitir que o instante se configure,
se instaure pleno, e em seguida desapareça. O existir é poema em fluxo, sua
impermanência está no desmanchar constante do tempo, sua essência, no
reconhecer-se parte integrante de um ciclo contínuo, uma viagem de fora para
dentro repleta de indefinições, mas que ainda assim sugere o recomeço na
primavera, a alegria no verão, a introspecção no outono e o silêncio no
inverno, numa sucessão infinita e derradeira.
Este é o meu
testemunho, a confissão daquilo que o tempo tatuou em mim de uma vez e para
sempre, aquele nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho
pelas ruas baldias ou junto ao mar, eu repetia esse mantra sagrado, desfolhava-o
na brisa como se fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que
cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Sezefredo Taveira!, gritava até
perder os bofes, gritava para que os costados dos navios pudessem devolver-me
em forma de eco essa primeira lição de poesia, essa interminável soletração do
absoluto.
Não há pedra
que pense o vento como o vento pensa a pedra. Tenho a dor das conchas
extraviadas, uma dor de pedaços que não voltam, eu sou os destroços de muitas
pessoas. Em caso de perda, e também em todos os outros, melhor será contar
histórias, enquanto as narramos, os futuros se prometem e os passados se
acumulam. Só assim é possível abrir as tramas e soltar as pontas amarradas.
Quanto ao que restar fechado, não devemos desistir: é importante prosseguir com
os contos, libertar relatos, sonhos e devaneios, até que a contraluz de uma
fala comece a delinear contornos na obscuridade.
Muitos anos
depois, desintegrada a Maceió da minha infância, e já estrangeirado de raízes e
paróquias, voltei à curva da rua do Farol. O portão trancado e as janelas
vedadas por tábuas sinalizavam a deserção do palacete Taveira, lá dentro, no
pomar carregado de fruta madura, a gataria se espreguiçava à sombra de bojudas
porcelanas azuis. Metade de um século se passara desde os dias em que o bonde,
na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada do amor, o universo
branco e verde
estriado de grossas grades negras e manchas róseas. Seus antigos dramas e
habitantes já deveriam andar por outra, e mais metafísica, morada. Mas parei
diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos azulejados, as
escadarias de mármore, o azinhavre no ferro das balaustradas. E chamei:
Sezefredo Taveira!
Chamei a quem,
a quê? Repetia inebriado a fórmula mágica, encantatória, conjurando o fantasma
da mulher que em todas as outras mulheres busquei, encontrei e perdi ao longo
da vida. Porém, a Rainha dadeira do meu reino maravilhoso de antanho emigrara
em arribação de nuvens, transfigurada em legendas de musgo na pedra de
cantaria, sublimada no cipó bravo a ingresiar as calhas derruídas do casarão;
seu nome para sempre ignorado voou pelos ares como um pássaro, chocou-se contra
o costado dos cargueiros de além-oceano, e voltou metamorfoseado em eco aos
meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia dos nomes que não precisam mais de
figura ou anedota, e se tornaram para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e
enxuto.
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