A festa do
Praquemquer, sob a batuta do MC da Santiago rolava o som e um programa de
primeira, atraindo gente da Piraporinha, Jardim Pirajussara, Morro do Ingá,
Parque Regina, Ararinha, São Luís, Buraco do Rato, Jardim Fernanda, e de várias
outras quebradas, já que os bailes e rolês da perifa vivem na mira do
proibidão. No terreno do lava-rápido se espalhando pelo capoeirão baldio ao
lado, até duas mil pessoas já se haviam reunido, misturando as lagartixas ninja
do break e do free style, com os pagodeiros mela-cueca, os rappers risca-faca, as
cachorras do funk e as bichinhas rebolando no puts-puts do DJ.
Peri deveria
se apresentar por volta da uma da manhã, mas daquela vez a coreografia afinada
e acrobática do seu quinteto de street dance estava destinada a acabar mal. Tinha
sido encomendado pelo gerente do seu pedaço por causa de um mal entendido, uma tremenda
cagada. Emprestou a cabrita pro bróder ir buscar a avó no hospital, os polícias
güentaram o moleque na saída da favela, tudo limpo, documento e tal, deixaram
seguir. Os soldados do movimento filmando tudo à distância. No dia seguinte, os
homens da lei dão uma batida-monstro na biqueira, fora do arrego habitual.
Ligando (errado) os pontinhos, os traficas concluíram que o dedo nervoso tinha
sido o dono da moto.
A lei da pedra
não tem perhaps, sentencia rápido: morte ao traíra. O menino de dezessete anos,
filho de pai desconhecido e órfão de mãe do crack, era agora um cara marcado
para morrer. Dona Jovina, líder comunitária do Capão, criou o neguinho
sangue-bom na rédea curta e no temor a Deus, sentia muito orgulho de vê-lo
estudando e trabalhando, lutando pelos seus sonhos. Os bicos de delivery pra
pizzarias da região pagavam a prestação da scooter e ainda sobrava algum pra ajudar
nas despesas de casa. Pouco bebia, não fumava, não usava drogas, seu único
vício era dançar ― e ele mandava bem, arrancava gritinhos das minas durante os
solos do grupo Black tipo A.
No entanto, o
que salvou Peri foi justamente o pó, o combustível do capitalismo. Biqueira é
que nem padoca, você compra o pão, e na caixa decide também levar um maço de
Hollywood. Drogas e armas. Magaiver, o encarregado de mandá-lo para o país dos
pés juntos, comprou uma pistola e um revólver a prazo, mas à vista teria de
matar o suposto cagüete: o acordo com o gerente da boca incluiu de brinde a munição
da mente. Cocaína, a Rainha Branca das noites viradas. Malandro cafungou a carreira
de cortesia e foi armar sua campana no bar do Neco, ficou por ali, tomando umas
na mesa, dando uns tecos no banheiro do bar, só esperando na tocaia.
Só que a
branquinha faz dessas coisas, acende as luzinhas do cérebro como se fosse Natal
o ano inteiro, mas também solta a língua do freguês como se todos fossem amigos
da vida inteira. Dopamina e noradrenalina, a paz e a força convivendo em total
equilíbrio. Em pouco tempo a clientela do Neco já sabia a fita que ia rolar
logo mais, alguns já até apostavam com quantos furos o moleque ia acabar. Todos
riam, jogavam sinuca e entornavam a breja gelada, menos um, o Tiziu, amigo do
Perivaldo. Ele fez cara de paisagem, se fingiu de morto pra comer o cu do
coveiro, grudou a cara no chão e ficou ali moscando, até que achou uma brecha
pra escapar sem ser visto.
― ‘Noite, dona
Jovina, Peri tá?
― Lá dentro,
tá dando um cochilo antes de sair pro baile...
― A senhora me
desculpa, mas vou acordar ele.
― Que cara é
essa Tiziu, viu a mula sem cabeça?
― Ih, tia,
acho que eu senti foi o budum do Capeta bem do meu lado. A bênção.
Entrou apressado
na casa de tijolo sem chapisco e já foi acordando o rapaz dando bica nas pernas
dele.
― Acorda mano,
rapidinho fio, que a tua batata tá assando. Fizeram tua caveira com o William,
mano, teu nome tá pregado no poste, anda porra!
― Caralho
Tiziu, que porra de quizumba é essa? Tu chega aqui virado no cão, me chutando, véio,
que parada é essa?
― Peri, meu
bróder, tava até agora no bar do Neco ouvindo um maluco que tá com a bala que
tem teu nome na agulha. O pessoal do movimento tá achando que tu cagüetou eles,
e mandaram esse tal de Magaiver te apagar, mano.
― Que loucura,
véi... mas, como? Caraca, emprestei minha vespa pro Gabriel, ele me falou que
os gambé deram uma dura, mas ele não...
― O caso é que
maluco filmou a fita, e fez a idéia. Arruma tuas coisas e cai no mundo, Peri,
já costuraram teu nome na boca do sapo, irmãozinho.
― Eu não tenho
parente, Tiziu, minha mãe é tudo pra mim, não tenho aonde ir. Vou lá levar uma
idéia com o William, acho que consigo explicar...
― Tá bem
louco, Perebas? E se malandro não dormir no teu barulho, tu faz o quê? Já vai
tá ali no jeito, na boca do lobo cercado de cupincha dele, mano, eles vão te
matar várias vezes. Lembra aquele nóinha que eles meteram no “microondas”, e
aquele outro que pregaram as mãos e os pés no muro? Dedo duro, à vera ou não,
ninguém da profissão perigo perdoa.
― Mas, mano,
vou pra onde? E deixo mãe Jovina aqui?
― Com ela não
mexem, sossega, o problema é tu, Peri, prestenção, hoje começa o resto da tua
vida, sai deste lugar e nem pensa em voltar, mano. Vacila não, foi mó sorte sua
que eu tava ali sobrando, iam te subir enquanto você dançava no palco, igual ao
Daleste. Não força a amizade com teu anjo da guarda, ganha a estrada véio. E
já.
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