Ele sempre
soube que era negro, neguinho, urubu, boneco de piche, tiziu, tição, chiclete
de onça, sempre percebeu os olhares atentos dos seguranças, as perguntas dos
porteiros, as inevitáveis entradas de serviço, a espera com a pizza atrás das
grades de edifícios onde nunca poderia entrar. Sempre soube que era adotado e
que dos seus pais não poderia esperar nada, todos os dezessete da sua vida
tinham sido uma segunda chance. Não era para ele ter nascido, nascido, quase
não sobreviveu, crescido, agora se via na obrigação de cair no mundo de uma
hora para a outra. O que Peri nunca poderia saber é que também ele se tornaria
um negro fujão como Zumbi, mais um.
Nunca mais
esqueceu aquela noite: doze de agosto, o ano ele não lembra porque ainda era muito
pivete. Ele assistia ao Supercine, o filme tinha Tom Hanks na comédia Será que ele é? No intervalo, uma
mensagem em vídeo interrompe a programação. Um homem encapuzado usando colete à
prova de balas diante de uma bandeira que dizia: “O PCC luta pela injustiça
carcerária. Paz e justiça”. O homem é negro, ou quase, como quase todo mundo na
sua quebrada, ele fala das prisões, os depósitos dos humanos sem direitos,
explica que a guerra não é contra a população, os inimigos são o Estado e o seu
braço armado, a polícia. Ele termina com uma frase encarando a tela: “A luta é
nós e vocês”.
Paz, justiça e
liberdade, era o lema deles, repetiam como um refrão de rap. Peri descobriu no
espaço de uma noite que não terá os dois primeiros, que só lhe sobrou a correria
pela sua liberdade. Escapou mocosado na mala do carro de uma voluntária da ONG
que ensinava teatro, dança e capoeira na favela. Dormiu numa ocupação da Barão
de Limeira no centro da cidade, e saiu no dia seguinte para procurar outro
lugar para ficar. Um dia luminoso e pachorrento de domingo começava na
metrópole que não se importava com ele, as pessoas iam e vinham pelas ruas
despreocupadamente.
Tentou parar
de raciocinar, tentou parar de pensar que estava tudo errado: os bandidos
lutavam pela justiça, enquanto a justiça lutava pelos ricos. Vocês? Nós? De
quem é a luta? Quem são os mocinhos? Quem são os bandidos? O que ele sabia é
que, no final, sempre o poderoso esmaga o fraco. Deslizava no seu skate carregando
a mochila nas costas, bonezão de pala cobrindo o rosto e a carteira com dez
reais enterrada no bolso da calça larga. Não tinha a menor idéia do que deveria
fazer a partir de agora. A porra tava toda errada. Tudo.
As duas
meninas haviam ensaiado a coreografia à exaustão, cansadas, deixaram-se cair na
cama ainda acompanhando no tablet o clipe do Chimera Dance Cover. Os vídeos da
música conhecida como K-pop, o pop coreano, rolavam na TV instalada no típico
quarto de adolescente, grupos com nomes como Block B, Wide Vision, SHINee,
2NE1, Winlock Dance Crew, D.I.V.A., Tiny G, B2, Sun Mi, além do inimitável Psy.
― Zica
monstra, amiga, zica monstra. Desculpa falar, mas esse mino tem a maior cara de
encrenca.
― Por quê? Só
porque ele é pobre? Qual é, Sandrinha, se for assim nós também não somos da
burguesia...
― Ah, Ceci, a
Freguesia não é a mesma coisa que o Capão, aqui é bairro, não é quebrada. Lá
onde esse Peri mora, jacaré toma água no canudinho de medo de piranha, fia.
Caía a tarde.
A menina admirava o estilo bem próprio de Ceci se vestir edançar, os olhos
grandes e amendoados, o rosto moreno rosado, os lábios carnudos, os longos cabelos
arrumados em dread locks coloridos. Na verdade, ninguém conseguia evitar um
certo despeito diante da beleza de contornos tão definidos quanto suaves da
amiga, que lhe parecia uma mistura de Rihanna com Beyoncé. A delícadeza da negritude
somada à graça desdenhosa do índio.
― Então, as
meninas tão aqui me cobrando, borá lá no Centro Cultural ensaiar?
― Certeza. Vai
que o grupo dele também cola lá pra ensaiar...
― Até o nome
que escolheram é zoado: Black tipo A!
― San, eu
adoro o nome do nosso grupo: Sweet Nightmare, doce pesadelo.
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