sábado, 15 de novembro de 2014

Perivaldo e Cecivânia #4



Ajeitou os fones no ouvido, puxou as calças ― inutilmente ― para cima, e saiu à direita na Ipiranga só quebrando de levinho o skate na contramão dos carros. Pra desbaratinar a linha reta ia dando uns flips, backside, frontside, contornou na Praça da República saltando os buracos do asfalto com ollies cabulosos. Tudo à sua volta estava em movimento, os carrinhos de papelão, os homens-placa, as pombas, sacos plásticos voavam, as pessoas iam ou voltavam de algum lugar, desciam do ônibus, entravam na lotérica, paravam pra comprar amendoim torrado. Parecia que todos tinham seu lugar no mundo, caminhando para destinos conhecidos, protegidos por Deus e abrigados num lar. Menos ele, que não tinha feito nada errado, a não ser nascer.
Precisava parar, pensar, mas como, se estava com a sua mente até às tampas de pensamentos avulsos e o corpo atochado de adrenalina? Não podia dormir uma segunda noite no mesmo muquifo, isso era certo, qualquer ligação com a sua comunidade tinha de ser cortada. Muito zoião por aí. Precisava encontrar alguma coisa, alguém. Lembrou dos broders da Roosevelt, numa hora dessas devia ter vários deles por lá quebrando geral nos gaps, rampas, escadas e palcos da praça preferida dos skatistas de street. Não deu outra: molecada tava lá tocando o terror no concreto. Sentou num canto, ouvindo os versos da MC Luana.
Nasceu! Mais um fruto do acaso
E o mané que não quer nada,
O sobrenome é descaso
Uma gravidez indesejada, mesmo com a prevenção
Não importa sua crença ou religião
E imagina, de uma forma perigosa e clandestina
Como é que vai fazer para mudar a sua sina...
Pois é, como fazer pra mudar a sua sina? Tinha a impressão de que o tempo havia acelerado como em um filme, era louco pensar que nunca atentara para o tempo, a substância inquieta e fluida de que a vida é feita, essa coisa sempre outra, mutante, indecifrável. Peri atravessava um mistério a cada minuto, enigma não resolvido que logo escapava, substituído continuamente por outro quebra-cabeça mais novo e aterrorizante. Tinha caído na corrente de um rio sem fim, a história se repetia, é verdade, mas também se transmutava, cambiando microscopicamente, imperceptivelmente, até que o instante passava deixando a certeza de que nada seria como antes. Nascer é muito comprido.
― E aí moleque, tá aí de canto, mocosado, que é que tá pegando, Peri?
― Fala, Bugalu! Tô de boa, mano, só no varial...
― Então bro, cai dentro, bora lá fazer umas manobra. Ou vai ficar aí só de rosca?
― Ih, mano, tô piano hoje, mó caô, uma roubada federal. Escuta, tem a manha de me arrumar um canto pra mim dormir, só por hoje?
― Putcha vida, irmão, lá na goma nem rola. Minha irmã mudou pra casa com bebê, cunhado e o carai, eu mesmo tô dormindo no chão da sala. Sem chance.
― Pô cara, desculpa chegar assim de pé na porta, é que... meu perrengue é sinistro mesmo.
― Mas qual que foi? Tu comeu a mãe do guarda?
― Nem zoa, Bugalu, a resenha é mais cumprida que a Estrada do M’Boi Mirim, o caso é que emprestei a cabrita prum broder que ficou de conversa com gambé, e agora o gerente lá da minha quebrada tá achando que fui eu que cagüetei a firma.
― Caraca, véio, sujeira fodida! Esses cara do movimento não deixa frango engordar pra galo, já mata no ovo.
― Pois é, véio, nego me encomendou e não tenho como explicar que focinho de porco não é tomada.
― Seguinte Peri, esses pela-saco daí fizeram uma entera pra comprar uns bagulho de comer e refri. Tó aí mano, uma garça, contribuição nossa pra tu ir se virando por enquanto.
― Opa, já ajuda. Brigadão mesmo. Vou sair fora, valeu irmão.
― Peraí meu, onde cê tá indo criatura?
― Nem sei, só não quero ficar aqui batendo cara, eu que não vou dar mole pra kojak.
― Então Peri, em vez de ficar pasmando por aí, por que tu não cola lá na Vergueiro? Cê tem umas parada lá com o pessoal do break, que eu tô ligado.
― Somente! Hmm, daqui pra chegar lá é dois palito... Ei, Bugalu, mais uma coisa: tu nem me viu, firmeza?
― Nem precisava falar, vai pela sombra pé de chumbo ― o garoto deu um spin de 360 graus e acelerou na direção de um corrimão que ele desceu deslizando a prancha no aço escovado.


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