Àquela altura
a coisa toda não admitia meias soluções, o problema estava posto, aliás, exposto:
a minha vida inteiramente arreganhada, e o titular da conta sem controle algum
sobre o processo. Acontece que eu não estava nem um pouco disposto a desistir
da privacidade sem luta, o resgate era alto: precisaria abrir mão das redes
sociais, das facilidades da moderna comunicação, voltar ao tempo (já vintage)
em que as pessoas sobreviviam sem ter todos os seus passos roteados pela
internet.
Difícil? Sim,
mas não impossível. Já não se tratava mais de como viver junto, mas de como
viver longe de mim. Decidi-me pela amputação da minha dimensão pública, ou, pelo
menos, da parte pública do que deveria ser íntimo ― dar cabo daquele software
com pretensões a subcelebridade ganhou o status de missão principal, doravante
prioridade máxima, topo da lista, alerta vermelho. Para dar uns fumos
ritualísticos e agregar solenidade à promessa autoimposta, formulei-a em voz
alta.
― Não vou
deixar esse sujeitinho, que na verdade é uma parte de mim, uma parte ínfima, um
energúmeno sem noção nem critério, acabar comigo. Tudo que eu sou, tudo que eu
tenho, custou pra conquistar, não será um ectoplasma de merda que vai melar a
porra toda. Matar é errado, mas, como essa é uma direção inevitável da evolução
tecnológica, prefiro que eu mesmo o faça. Não outra pessoa.
Há sempre um
trajeto circular no discurso que dirigimos a nós mesmos, não nego que agisse em
mim naquele momento uma boa dose de pensamento desejante, a vontade ingênua de
que o desejo, uma vez traduzido na mágica das palavras, se torne irresistivelmente
realidade. Por outro lado não ignorava as contradições em que caía, minha mente
buscava às pressas justificativas morais ou uma lógica que as sustentasse:
assim, argumentava contra o absurdo de matar para preservar com a metáfora da
poda necessária, contornando o tabu do homicídio por meio da muito mais
palatável noção de suicídio. Ortotanásia com um suave tempero de autoengano e eutanásia.
Peguei oito
horas de estrada rumo à Serra da Canastra, o pretexto foi visitar propriedades
dos meus pais que requeriam atenção há tempos. Lira ficou sem entender porque
não a quis levar junto de jeito nenhum. Era a coisa óbvia a ser feita: atrair o
cara para uma região de sombra do sombrio sinal da telefonia brazuca, e dar fim
nele de uma vez por todas. Que o paparazzo ia aparecer por lá não tinha a menor
dúvida. O velho sítio abandonado próximo ao Parque Nacional serviria como um
excelente túmulo para a aberração modernosa do meu alter ego.
Nem bem
terminei de descarregar meus pertences do jipe, e lá estava o debilóide no gramado
em frente à casa tirando selfies com as montanhas ao redor usando um suporte de
GoPro.
― A vista é
excelente, mas duvido que você consiga rede pra postar as fotos.
― Ah, oi, não
faz mal, posso fazer isso mais tarde.
― Escuta, já
que estamos só nós dois aqui, vamos falar de homem pra homem: você não acha
meio babaca ficar compartilhando tudo
que vive, em vez de realmente viver o
conteúdo dessas imagens?
― Pode até ser,
mas, veja bem, você é um publicitário, acha que as empresas que te pagam
regiamente pra cuidar da imagem delas são também... meio babacas?
― Deixa o meu
trabalho fora desta conversa!
― Eu sempre
deixo seu trabalho fora, a não ser quando você mesmo posta eventos corporativos.
Meu foco é o lazer.
― Sei, você é
uma espécie de meu eu de férias.
― Exato.
Férias, um assunto que você tem descuidado bastante em função da sua tão
absorvente quanto exitosa carreira. É como se, de repente, por causa dos
inúmeros compromissos sociais/profissionais, você não tivesse mais tempo ou
imaginação pra levar sua própria vida.
― E é por isso
que preciso de você? Não me faça de otário, pliz.
― Alguém te
obrigou a instalar o CELEBRIZOU? Claro que não, você comprou esse serviço que não tinha saco de fazer sozinho. No mundo
em que eu e você vivemos ninguém impõe nada, mas tudo se vende.
― Momentinho,
momentinho, vamos deixar uma coisa bem clara: “vivemos” é o cu da sua mãe, eu
sou o cara real por aqui, entendeu?!
― Calma, não
precisa se exaltar. Você cuida da parte, digamos, logística da vida, e eu toco
o resto: apartamento single com um parque de diversões na área social, viagens estilosas,
festas da moda, namoros com pouco afeto, etc. Dá pra resolver tudo se soubermos
dividir as...
― Dividir o
caralho, meu irmão, o caralho! Tudo isto é meu, me pertence, igual à minha
vida, aquela que você hackeou, seu cavalo-de-tróia do inferno! Fui eu que
contratei? Pois agora eu que descontrato, morou? Vá pra puta que pariu, achando
que meu ouvido é penico!
― Ei, o que
você... Pára, solta meu pescoço!
― Me dá só uma
razão pra eu não acabar com você agora mesmo!
― Po... por
favor, chega, uff! Me solta! Meu, cê tá muito louco, se segura cara. Não sou
uma ameaça, sou só uma tradução “enhanced” de você, um protótipo otimizado, se
me permite dizer, é você a versão beta. Ok, você tem um ponto aí, eu sou a
criatura, não o criador, mas há de concordar que sou um daqueles casos de filho
melhor que o pai, de obra que supera a vida. Onde você vai?
― Vou ligar o
gerador, pretendo tomar um banho quente nesta birosca. A viagem foi longa e
estou cansado. Fica aí pensando, ô versão ampliada, como é que a gente faz, o
que eu sei é que deste lugar só vai voltar um de nós.
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