Então entendeu
de um clarão só aquelas histórias dela ― invariavelmente mal costuradas, cheias
de papo mole ―, mencionando uma “vida de sobressaltos”, a obrigação de andar sempre
na função, “esperta no movimento” dentro da própria casa. Essa parte não conjuminava,
para os seus padrões, Ceci tinha o maior mole do mundo, burguesinha da
Freguesia que usa tênis de marca e recusa contrafilé. Mas estava ali, na frente
do seu nariz, filtrada pelo cinemascope dos vãos da esquadria a metamorfose se completava
no interior opressivo e penumbroso.
O Ari boa
praça e amigo de todo o bairro desaparecia gradualmente sob a pelagem do
lobisomem doméstico, assistia pregado ao chão o Aristeu predador familiar deslizar
sobre a menina: um polvo cheio de braços gosmentos e dedos e
vem-cá-minha-princesa. Como desgraça nunca vem só, nesse momento ouviu barulho
vindo do portão ― dona Vânia avisou que ia almoçar fora naquele dia, coisa boa
não devia ser. Sentiu no ar o cheiro da mexerica azedando. Correu pra entrada,
forçou, empurrou, chutou. Trancada.
― Abre essa
porta! Que merda, abre essa porta!
Lá dentro
escutava o barulho de móveis derrubados, louça estilhaçando, gritos, palavrões,
finalmente a porta escancarou de golpe e a garota saiu correndo pros seus
braços. Era a imagem da superação do medo, toda arranhada, descomposta,
valente, atrás dela, cambaleando, o padrasto emergiu da soleira com os cabelos
desgrenhados e os zoião estalado feito ovo frito. Não pensou nem meio segundo:
meteu uma bicuda na folha da porta arremessando o bruto de volta pra sala aos
berros.
― Ele te
machucou, esse escroto te... ?
― Estou bem,
quer dizer, agora eu tô. Valeu a força. Vamos sair fora, o filha da puta vai
voltar virado no cão!
― Ceci, tem
uns caras lá no portão, pela frente não rola. Quer saber?, esse mala do teu
padrasto é o maior P2. Certeza que me cagüetou.
― Hmm, vem por
aqui, dá pra pular o muro lá de trás.
Apoiados nas
sacas de quirera que alimentavam as gaiolas do Aristeu, se alçaram para
atravessar para o terreno vizinho. Peri não se enganou quanto a ele, entre as
mil e uma inutilidades a que se dedicava, também havia a de informante da
polícia: dois investigadores de campana saíram de uma barca fria e realmente acabavam
de invadir a residência. Encarapitados no muro, viam os quintais das casas do
quarteirão vazios àquela hora de calor infernal, ouviam atrás de si as passadas
dos agentes no piso de cerâmica hidráulica da garagem.
― Ali, naquele
ponto é mais fácil pular pro lado de lá. Além de que, conheço a família que
mora aí. Tá suave.
― Certo, vai
primeiro. Eu cubro pra você.
― Rapidinho
mano, que é que tá pegando?, tá afim de levar pipoco de graça? Fica moscando
não, Peri.
― Aí, na boa, se
ligou no tamanho desse cachorrão da tua vizinha?
― Véio, larga
mão de ser cagão e pula logo. Ela é querida, só tem tamanho, conheço a Nina
desde filhote. Não é fofucha?
― É ruim, hem?
Puta de um rottweiler!
― Que o quê, é
um dogue. Olha só, tive uma idéia, vou pegar emprestada aquela bicicleta dali. Vamos
sair na rua de baixo.
Na rua da
Bica, viraram à esquerda queimando asfalto enquanto desciam, Ceci na magrela, e
ele na remada dura do skate. A topografia elevada do bairro os favorecia porque
pegavam um longo trecho em descida contra a força bruta do carro, mas a
vantagem inicial já se desfizera, a polícia deu a volta o quarteirão e veio na
captura de sirene ligada.
― Você não tá
indo rápido demais nesse bagulho?
― Tá me
zoando, Ceci? Me acha mina!
Peri deitou
cabelo naquelas rampas de asfalto, deu um shove it só pra impressionar e
acelerou sem dó na frente dela avisando que ia sair à esquerda na Souza Pinto,
uma curva de noventa graus em alta velocidade que quebrou as pernas dos
perseguidores. Quando atingiram a Paula Ferreira já tinham despistado os canas,
parecia mamão com açúcar chegar na Edgar Facó, e dali seguir pela pista
contrária da avenida até à marginal. Daí, já era.
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