domingo, 18 de janeiro de 2015

Perivaldo e Cecivânia #9




Então entendeu de um clarão só aquelas histórias dela ― invariavelmente mal costuradas, cheias de papo mole ―, mencionando uma “vida de sobressaltos”, a obrigação de andar sempre na função, “esperta no movimento” dentro da própria casa. Essa parte não conjuminava, para os seus padrões, Ceci tinha o maior mole do mundo, burguesinha da Freguesia que usa tênis de marca e recusa contrafilé. Mas estava ali, na frente do seu nariz, filtrada pelo cinemascope dos vãos da esquadria a metamorfose se completava no interior opressivo e penumbroso.
O Ari boa praça e amigo de todo o bairro desaparecia gradualmente sob a pelagem do lobisomem doméstico, assistia pregado ao chão o Aristeu predador familiar deslizar sobre a menina: um polvo cheio de braços gosmentos e dedos e vem-cá-minha-princesa. Como desgraça nunca vem só, nesse momento ouviu barulho vindo do portão ― dona Vânia avisou que ia almoçar fora naquele dia, coisa boa não devia ser. Sentiu no ar o cheiro da mexerica azedando. Correu pra entrada, forçou, empurrou, chutou. Trancada.
― Abre essa porta! Que merda, abre essa porta!
Lá dentro escutava o barulho de móveis derrubados, louça estilhaçando, gritos, palavrões, finalmente a porta escancarou de golpe e a garota saiu correndo pros seus braços. Era a imagem da superação do medo, toda arranhada, descomposta, valente, atrás dela, cambaleando, o padrasto emergiu da soleira com os cabelos desgrenhados e os zoião estalado feito ovo frito. Não pensou nem meio segundo: meteu uma bicuda na folha da porta arremessando o bruto de volta pra sala aos berros.
― Ele te machucou, esse escroto te... ?
― Estou bem, quer dizer, agora eu tô. Valeu a força. Vamos sair fora, o filha da puta vai voltar virado no cão!
― Ceci, tem uns caras lá no portão, pela frente não rola. Quer saber?, esse mala do teu padrasto é o maior P2. Certeza que me cagüetou.
― Hmm, vem por aqui, dá pra pular o muro lá de trás.
Apoiados nas sacas de quirera que alimentavam as gaiolas do Aristeu, se alçaram para atravessar para o terreno vizinho. Peri não se enganou quanto a ele, entre as mil e uma inutilidades a que se dedicava, também havia a de informante da polícia: dois investigadores de campana saíram de uma barca fria e realmente acabavam de invadir a residência. Encarapitados no muro, viam os quintais das casas do quarteirão vazios àquela hora de calor infernal, ouviam atrás de si as passadas dos agentes no piso de cerâmica hidráulica da garagem.
― Ali, naquele ponto é mais fácil pular pro lado de lá. Além de que, conheço a família que mora aí. Tá suave.
― Certo, vai primeiro. Eu cubro pra você.
― Rapidinho mano, que é que tá pegando?, tá afim de levar pipoco de graça? Fica moscando não, Peri.
― Aí, na boa, se ligou no tamanho desse cachorrão da tua vizinha?
― Véio, larga mão de ser cagão e pula logo. Ela é querida, só tem tamanho, conheço a Nina desde filhote. Não é fofucha?
― É ruim, hem? Puta de um rottweiler!
― Que o quê, é um dogue. Olha só, tive uma idéia, vou pegar emprestada aquela bicicleta dali. Vamos sair na rua de baixo.
Na rua da Bica, viraram à esquerda queimando asfalto enquanto desciam, Ceci na magrela, e ele na remada dura do skate. A topografia elevada do bairro os favorecia porque pegavam um longo trecho em descida contra a força bruta do carro, mas a vantagem inicial já se desfizera, a polícia deu a volta o quarteirão e veio na captura de sirene ligada.
― Você não tá indo rápido demais nesse bagulho?
― Tá me zoando, Ceci? Me acha mina!
Peri deitou cabelo naquelas rampas de asfalto, deu um shove it só pra impressionar e acelerou sem dó na frente dela avisando que ia sair à esquerda na Souza Pinto, uma curva de noventa graus em alta velocidade que quebrou as pernas dos perseguidores. Quando atingiram a Paula Ferreira já tinham despistado os canas, parecia mamão com açúcar chegar na Edgar Facó, e dali seguir pela pista contrária da avenida até à marginal. Daí, já era.


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