sexta-feira, 3 de abril de 2015

República Federativa do Brasil para Cristo (1)




Dois de fevereiro de dois mil e vinte

            Bem, aquilo era precioso ao extremo, singular, e ao mesmo tempo estava em toda parte, amazônico, de enorme complexidade e ainda assim sutil em sua despretensão, o som do isolamento que alcança milhões, desavergonhado e inevitável como uma pedra arremessada na superfície de um lago imensamente azul, suas ondas se propagando excêntricas em mim alargando sempre mais onde antes havia borda, fronteira, desconhecido.
            Havia ali uma atmosfera exótica desprovida de qualquer réstia de consolo, muito menos humor, mas ela queria compartilhar a riqueza de alma, a consciência do infinito, e a extraordinária qualidade de constantemente revelar mais de si àqueles que se dedicam a conhecer por meio da arte. Talvez estivesse dizendo: se você também gostar disto, então temos alguma chance.
            “Quanto menos palavras você usar, mais intenso o diálogo”, ela disse, e depois se sentou.
            E, de fato, era uma conversa entre seis elementos, porém, as sílabas tinham sido magicamente compactadas encavalando respirações e pausas, dissolvendo o diálogo no puro som de um discurso sem fala, como se as palavras retornassem para as coisas transformadas na mais refinada paisagem sonora que o humano pode suportar. O símbolo inoculado na carne obedecendo a uma equação de tempo e calor: ovo, pupa, larva, a se desenvolver até eclodir em música ambiente.
            Eu queria acreditar que tínhamos um relacionamento. Acabáramos de fazer sexo, ela estava sentada numa poltrona ao lado da cama vestida com a minha camisa, me lembro do cheiro de couro velho e de estar incrivelmente apaixonado. Mas ela não se deixava limitar por mucosas, afeto ou idéia, aspirava ao processo orgânico completo da harmonia lenta, sedutora, sombria, meditativa, luminosa e inescapável, descobrira o desejo de mudar o cenário emocional da vida.
            “Isto foi concebido sem ensaios no porão de uma igreja, todas as sensibilidades individuais apontando pra dentro, convergindo num multifoco interior de concentração e feitiço, de introspecção e reflexão em níveis tais que o clima por si só se transforma em obra de arte”.
            Não duvidei. Reconhecia a habilidade em combinar modais sofisticados com uma atmosfera minimalista, extática, quase hipnótica, especialmente me agradava o cuidado com a compreensão do espaço dentro da música, a coesão do clima que ela transmite, a vontade de criar um mundo contemplativo no qual a alma dos perplexos podia encontrar repouso. Os temas improvisados, a complexa progressão de acordes, cada nota tocada, pareciam se alongar indefinidamente repletos de melancolia perturbadora e do rigor suave dos calígrafos japoneses que passam um dia inteiro preparando pincéis e tintas antes de executar o mais delicado dos ideogramas num único, e indelével, traço.
            “A gente corre perigo, você sabe”, disse, já me arrependendo antes de terminar a frase.
            “Você não, eu sim. Você é filho da turma BBB, pra você pega nada. A verdade é que nunca vai poder me amar como ama uma mulher, um travesti, um pobre, um bandido. Sempre vai pensar como o homem que é”.
            “Nisso tem razão, sim. Sigo sempre a cabeça de baixo, a de cima votava errado pra caramba”.
            O que essa música quer de mim?
O que aquela mulher parecia me pedir tão além das minhas forças e possibilidades? Era a primeira vez que escutava aqueles 45 minutos e 44 segundos de música gravados em 1959 no porão de uma igreja transformada em estúdio no centro de Manhattan. Kind of blue. A cor do céu, o tom da modernidade é uma deslumbrante paleta de azuis, como em Picasso, Yves Klein, Matisse ou James Brown. Tudo que podia distinguir eram camadas harmônicas, talvez apenas um acorde recheado de notas em legato, um desgarramento do ciclo convencional de acordes substituídos por uma série de harmonias lentas, até repetitivas, a dinamitar com doçura os velhos parâmetros de ação e pensamento. Havia ali definitivamente uma essência que se revela mas permanece intocada, um raro instante de perfeição humana, de algo que nunca precisa erguer a voz para se fazer ouvir, e fala cada vez mais claramente com o passar dos anos.



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