Dois de fevereiro de
dois mil e vinte
Bem,
aquilo era precioso ao extremo, singular, e ao mesmo tempo estava em toda
parte, amazônico, de enorme complexidade e ainda assim sutil em sua
despretensão, o som do isolamento que alcança milhões, desavergonhado e
inevitável como uma pedra arremessada na superfície de um lago imensamente azul,
suas ondas se propagando excêntricas em mim alargando sempre mais onde antes
havia borda, fronteira, desconhecido.
Havia
ali uma atmosfera exótica desprovida de qualquer réstia de consolo, muito menos
humor, mas ela queria compartilhar a riqueza de alma, a consciência do
infinito, e a extraordinária qualidade de constantemente revelar mais de si
àqueles que se dedicam a conhecer por meio da arte. Talvez estivesse dizendo:
se você também gostar disto, então temos alguma chance.
“Quanto
menos palavras você usar, mais intenso o diálogo”, ela disse, e depois se
sentou.
E,
de fato, era uma conversa entre seis elementos, porém, as sílabas tinham sido
magicamente compactadas encavalando respirações e pausas, dissolvendo o diálogo
no puro som de um discurso sem fala, como se as palavras retornassem para as
coisas transformadas na mais refinada paisagem sonora que o humano pode
suportar. O símbolo inoculado na carne obedecendo a uma equação de tempo e
calor: ovo, pupa, larva, a se desenvolver até eclodir em música ambiente.
Eu
queria acreditar que tínhamos um relacionamento. Acabáramos de fazer sexo, ela
estava sentada numa poltrona ao lado da cama vestida com a minha camisa, me
lembro do cheiro de couro velho e de estar incrivelmente apaixonado. Mas ela
não se deixava limitar por mucosas, afeto ou idéia, aspirava ao processo
orgânico completo da harmonia lenta, sedutora, sombria, meditativa, luminosa e
inescapável, descobrira o desejo de mudar o cenário emocional da vida.
“Isto
foi concebido sem ensaios no porão de uma igreja, todas as sensibilidades
individuais apontando pra dentro, convergindo num multifoco interior de
concentração e feitiço, de introspecção e reflexão em níveis tais que o clima
por si só se transforma em obra de arte”.
Não
duvidei. Reconhecia a habilidade em combinar modais sofisticados com uma
atmosfera minimalista, extática, quase hipnótica, especialmente me agradava o
cuidado com a compreensão do espaço dentro da música, a coesão do clima que ela
transmite, a vontade de criar um mundo contemplativo no qual a alma dos
perplexos podia encontrar repouso. Os temas improvisados, a complexa progressão
de acordes, cada nota tocada, pareciam se alongar indefinidamente repletos de
melancolia perturbadora e do rigor suave dos calígrafos japoneses que passam um
dia inteiro preparando pincéis e tintas antes de executar o mais delicado dos
ideogramas num único, e indelével, traço.
“A
gente corre perigo, você sabe”, disse, já me arrependendo antes de terminar a
frase.
“Você
não, eu sim. Você é filho da turma BBB, pra você pega nada. A verdade é que
nunca vai poder me amar como ama uma mulher, um travesti, um pobre, um bandido.
Sempre vai pensar como o homem que é”.
“Nisso
tem razão, sim. Sigo sempre a cabeça de baixo, a de cima votava errado pra
caramba”.
O
que essa música quer de mim?
O que aquela
mulher parecia me pedir tão além das minhas forças e possibilidades? Era a
primeira vez que escutava aqueles 45 minutos e 44 segundos de música gravados
em 1959 no porão de uma igreja transformada em estúdio no centro de Manhattan. Kind of blue. A cor do céu, o tom da
modernidade é uma deslumbrante paleta de azuis, como em Picasso, Yves Klein,
Matisse ou James Brown. Tudo que podia distinguir eram camadas harmônicas,
talvez apenas um acorde recheado de notas em legato, um desgarramento do ciclo
convencional de acordes substituídos por uma série de harmonias lentas, até
repetitivas, a dinamitar com doçura os velhos parâmetros de ação e pensamento.
Havia ali definitivamente uma essência que se revela mas permanece intocada, um
raro instante de perfeição humana, de algo que nunca precisa erguer a voz para
se fazer ouvir, e fala cada vez mais claramente com o passar dos anos.
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