Vestiu-se,
toda a linguagem corporal anunciava a partida.
“Vai
assim, sem marcar uma ponta, nem pra deixar um contato...”
“Por
que eu deveria correr riscos? Se você me dedurar à polícia de costumes os
bíblias me mandam pra fogueira. Pensa um pouco: uma pedra cumprimenta uma tora
de madeira, que horas são?”
“Cinco
da matina, você tá sonhando.”
“Oito.”
“Por
quê?”
“Oi
tora.”
Saiu
do quarto andando felina, no batente da porta voltou o rosto pra me olhar
fazendo climinha drama queen como se fosse esta noche a última vez. Havia um
tegumento de hipocrisia bufona a recobrir toda a cena, mas não me atrevia a desafiar
o quebrante com alguma cagada que pudesse sair pelo lado oposto do cu.
“Tem
mesmo que ser desse jeito?”
“Somos
de mundos diferentes, não podemos fazer nada quanto a isso. Você sabe, sou
bruxa, doutorada nas mandingas do Satanás e seus asseclas, melhor se afastar das
hostes do Inimigo, meu bem.”
“Bah,
tá me tirando por bem pouco se acha que boto fé nessas histórias do Tutu
Marambá...”
“Sou
a sétima filha, aquela que a irmã mais velha recusou batizar, em noite de lua
nova, viro coruja e morcego pra vir voando chupar o sangue das crianças que não
querem dormir”, e ria, como se fosse a louca que deveras era.
“E
se a gente casasse? Daí ninguém nos incomodaria, você chega sóbria e sai
sombria, desocupa dentro de mim espaços infinitos, fala como se acabasse o
tempo... e vai embora?!”
“Nem
a pau, Juvenal! Deixo a liberdade vigiada nas ruas e o preconceito das vizinhas,
pra cair na frigideira de um pater famílias? Muito obrigado por querer me
salvar da solteirice, prefiro não ser respeitável.”
Fiquei
assistindo-a da janela indo embora pela rua vazia domingueira seguida pelo
cortejo mais alucinante de tabaréus que já tinha visto. Acompanhando a mulher
amada ia um mundão de gente e gado que até dava gostosura de ver: Bastião,
Arlequim, Catirina, Capitão Boca-Mole, de misturada com o Caipora, Babau,
Jaraguá, Morto-Carregando-o-Vivo, Turtuqué, Pastorinha, Caboclos-de-Fita,
Cazumbá, Caboclos-de Pena, e, por fim, a Burrinha, a ema, a cabra, o boi, o
cavalo-marinho, agitavam seus maracás junto das “fremosas” coureiras soprando
apitos e batucando tambores de fogo, matracas, zabumbas, pandeirões, fazendo
urrar o tambor de onça. O mais gozado é que só eu parecia estranhar aquela
charanga de hospício a evoluir pelo bairro num fuzuê desembestado que ofendia a
celebração dos cultos regulares.
Era
muita coragem se expor assim nos tempos atuais.
As coisas
haviam mudado muito no Brasil em pouco tempo, ou talvez estivessem iguais ao
que sempre foram e apenas nunca tivéssemos prestado a devida atenção aos
acontecimentos antes de se cristalizarem na realidade dos fatos. De segunda maior
democracia do mundo havíamos transitado a uma mal disfarçada teocracia de
indisfarçável feitio autoritário. Tudo começara com um deputado evangélico que
propôs a emenda constitucional pela qual nossa Carta Magna passou a exibir em
seu parágrafo inicial: “Todo poder emana de Deus”. Depois foram as revisões nos
códigos jurídicos, começaram banindo o aborto, mesmo de fetos anencefálicos ou
frutos de estupro, então veio o fim da maioridade penal, a pena de morte, a
proibição do homossexualismo e do sexo fora do casamento religioso, além da
definição de família como unidade indissolúvel constituída por homem, mulher e
filhos biológicos.
O que
antigamente chamávamos de esquerda a tudo isto assistiu catatônica e mais
preocupada em manter seus feudos políticos e acadêmicos, enquanto se defendia
árdua e custosamente das suas muitas pendências com a justiça. Lideranças
outrora consideradas progressistas haviam dissipado seu capital moral em
sucessivos governos desastrosos e corruptos consorciando-se, no plano nacional,
ao crime organizado, ao grande capital rentista, às milícias missionárias e ao
exército, enquanto no plano internacional nos mantínhamos firmes no irrelevante
papel de narcoestado exportador de matérias primas.
O fracasso não
assumido do modelo brasileiro ― um peculiar capitalismo patrimonialista de
Estado ―, cozinhou em fogo baixo as expectativas da nação, a capacidade de
inovar, de sustentar uma agenda criativa e socialmente igualitária, degenerando
num ambiente hostil onde predominava a sensação de desperdício de
oportunidades, se multiplicavam as gerações perdidas, adiando pras calendas a
construção do futuro. Em cada esquina um templo e uma biqueira: Deus, drogas e
armas. A turma BBB (banco, bala e bíblia) caçava abertamente os PPPs (pretos,
pobres e periféricos), e ainda sobrava diversão pra cima de gays, lésbicas,
transgêneros, espíritas, umbandistas e mulheres.
Chegamos ao
futuro, e o futuro tem cada vez mais a nossa cara. Os donos do dinheiro
transnacional olham com benevolência crescente os experimentos neo-autoritários
da antiga periferia do mundo: Brasil, Rússia, China, Índia, Irã, países ainda
mais complacentes ao jogo bruto do capital desregulamentado do que as velhas
democracias representativas.
Ela
desapareceu no horizonte.
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