domingo, 12 de abril de 2015

República Federativa do Brasil para Cristo (2)



            Vestiu-se, toda a linguagem corporal anunciava a partida.
            “Vai assim, sem marcar uma ponta, nem pra deixar um contato...”
            “Por que eu deveria correr riscos? Se você me dedurar à polícia de costumes os bíblias me mandam pra fogueira. Pensa um pouco: uma pedra cumprimenta uma tora de madeira, que horas são?”
            “Cinco da matina, você tá sonhando.”
            “Oito.”
            “Por quê?”
            “Oi tora.”
            Saiu do quarto andando felina, no batente da porta voltou o rosto pra me olhar fazendo climinha drama queen como se fosse esta noche a última vez. Havia um tegumento de hipocrisia bufona a recobrir toda a cena, mas não me atrevia a desafiar o quebrante com alguma cagada que pudesse sair pelo lado oposto do cu.
            “Tem mesmo que ser desse jeito?”
            “Somos de mundos diferentes, não podemos fazer nada quanto a isso. Você sabe, sou bruxa, doutorada nas mandingas do Satanás e seus asseclas, melhor se afastar das hostes do Inimigo, meu bem.”
            “Bah, tá me tirando por bem pouco se acha que boto fé nessas histórias do Tutu Marambá...”
            “Sou a sétima filha, aquela que a irmã mais velha recusou batizar, em noite de lua nova, viro coruja e morcego pra vir voando chupar o sangue das crianças que não querem dormir”, e ria, como se fosse a louca que deveras era.
            “E se a gente casasse? Daí ninguém nos incomodaria, você chega sóbria e sai sombria, desocupa dentro de mim espaços infinitos, fala como se acabasse o tempo... e vai embora?!”
            “Nem a pau, Juvenal! Deixo a liberdade vigiada nas ruas e o preconceito das vizinhas, pra cair na frigideira de um pater famílias? Muito obrigado por querer me salvar da solteirice, prefiro não ser respeitável.”
            Fiquei assistindo-a da janela indo embora pela rua vazia domingueira seguida pelo cortejo mais alucinante de tabaréus que já tinha visto. Acompanhando a mulher amada ia um mundão de gente e gado que até dava gostosura de ver: Bastião, Arlequim, Catirina, Capitão Boca-Mole, de misturada com o Caipora, Babau, Jaraguá, Morto-Carregando-o-Vivo, Turtuqué, Pastorinha, Caboclos-de-Fita, Cazumbá, Caboclos-de Pena, e, por fim, a Burrinha, a ema, a cabra, o boi, o cavalo-marinho, agitavam seus maracás junto das “fremosas” coureiras soprando apitos e batucando tambores de fogo, matracas, zabumbas, pandeirões, fazendo urrar o tambor de onça. O mais gozado é que só eu parecia estranhar aquela charanga de hospício a evoluir pelo bairro num fuzuê desembestado que ofendia a celebração dos cultos regulares.
            Era muita coragem se expor assim nos tempos atuais.
As coisas haviam mudado muito no Brasil em pouco tempo, ou talvez estivessem iguais ao que sempre foram e apenas nunca tivéssemos prestado a devida atenção aos acontecimentos antes de se cristalizarem na realidade dos fatos. De segunda maior democracia do mundo havíamos transitado a uma mal disfarçada teocracia de indisfarçável feitio autoritário. Tudo começara com um deputado evangélico que propôs a emenda constitucional pela qual nossa Carta Magna passou a exibir em seu parágrafo inicial: “Todo poder emana de Deus”. Depois foram as revisões nos códigos jurídicos, começaram banindo o aborto, mesmo de fetos anencefálicos ou frutos de estupro, então veio o fim da maioridade penal, a pena de morte, a proibição do homossexualismo e do sexo fora do casamento religioso, além da definição de família como unidade indissolúvel constituída por homem, mulher e filhos biológicos.
O que antigamente chamávamos de esquerda a tudo isto assistiu catatônica e mais preocupada em manter seus feudos políticos e acadêmicos, enquanto se defendia árdua e custosamente das suas muitas pendências com a justiça. Lideranças outrora consideradas progressistas haviam dissipado seu capital moral em sucessivos governos desastrosos e corruptos consorciando-se, no plano nacional, ao crime organizado, ao grande capital rentista, às milícias missionárias e ao exército, enquanto no plano internacional nos mantínhamos firmes no irrelevante papel de narcoestado exportador de matérias primas.
O fracasso não assumido do modelo brasileiro ― um peculiar capitalismo patrimonialista de Estado ―, cozinhou em fogo baixo as expectativas da nação, a capacidade de inovar, de sustentar uma agenda criativa e socialmente igualitária, degenerando num ambiente hostil onde predominava a sensação de desperdício de oportunidades, se multiplicavam as gerações perdidas, adiando pras calendas a construção do futuro. Em cada esquina um templo e uma biqueira: Deus, drogas e armas. A turma BBB (banco, bala e bíblia) caçava abertamente os PPPs (pretos, pobres e periféricos), e ainda sobrava diversão pra cima de gays, lésbicas, transgêneros, espíritas, umbandistas e mulheres.
Chegamos ao futuro, e o futuro tem cada vez mais a nossa cara. Os donos do dinheiro transnacional olham com benevolência crescente os experimentos neo-autoritários da antiga periferia do mundo: Brasil, Rússia, China, Índia, Irã, países ainda mais complacentes ao jogo bruto do capital desregulamentado do que as velhas democracias representativas.
Ela desapareceu no horizonte.


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