A
chuva dura pouco, novamente o calor estival volta a fustigar os habitantes do
menor país do mundo. A menina sai para caminhar tão logo termina o aguaceiro.
Ela está chorando. Não é incomum acontecer; mas hoje isso não a preocupa por
dois motivos: os óculos, que detesta usar, escondem as lágrimas curtas e,
também, porque chora de felicidade. Descobriu que pode ser, que vai ser, aliás,
já é feliz; a felicidade pode ser assim como uma tarde de sol que começou
nublada. Caminha a passos largos, de quando em quando, entremeados por pulinhos
de contentamento impaciente. Acabou de completar quinze anos e sente uma
felicidade vital e desanuviada que só nessa idade se pode sentir. Tem uma vida
maravilhosa pela frente.
São
as férias escolares de final de ano letivo, Manuela terminou o segundo ano do
colegial no Liceo Scientifico com
notas excelentes. É o orgulho dos pais e dos quatro irmãos. A família Morandi é
de poucas posses, não há viagem de férias, nem acampamentos de jovens, como para
muitos dos colegas de escola das crianças ― zelosos, Babo Emanuele e Mamma Marina
são bastante estritos quanto a privilégios: se não houver regalias para todos,
não as há para nenhum. Ninguém reclama.
A quarta filha
dos Morandi, no entanto, demonstra uma extraordinária aptidão para a música;
Manuela tem aulas de flauta transversal três vezes por semana e canta no coro
da igreja de Santa Ana, dentro do Vaticano, onde vive desde que nasceu. Mesmo durante
as férias grandes, continua a freqüentar as aulas da renomada Scuola Tommaso Ludovico da Victoria, conservatório ligado ao não menos
importante Instituto Pontifício de Música Sacra. Contrariando seus hábitos, naquele
dia toma a saída da Sala de Audiências, virando na Piazza dei Sant’Uffizio e seguindo a pé pela Via di Porta
Cavallegeri até à barulhenta Gregório VII.
Balançando o
estojo do seu instrumento no compasso de um rondó mental, ela se baladeia pelas
ruas a perguntar: “Sou bela?, sou feia?, ou, pior que tudo: serei apenas...
comum?!” Não, não pode mais duvidar, o mundo descobriu que ela possui algo de
muito especial sob aluviões de timidez, inibição e medo. Às vezes tem a
impressão de que as coisas se passam dentro de um filme; sofre como as heroínas
dos romances, sim, sofre terrivelmente por causa de um assunto secreto que não
tem coragem de contar a ninguém. Nem mesmo a um diário.
Só que agora,
enquanto sai à direita na Via Aurelia, percebe que a alegria é um pássaro que
perdeu o medo de se aninhar entre as suas mãos. O verão é uma estação louca, pensa,
os jovens precisam sair das suas casas e andar, andar perdidamente, só para
aspirar o odor pungente que sobe das ruas molhadas de chuva. “Manuela, quão
leve é o ar que agora flui para teus pulmões”. A avenida contorna
caprichosamente um imenso quarteirão à esquerda, onde uma mansão decrépita mal
se entrevê atrás de um espesso bosque; é um lugar ermo que costuma evitar
descendo do ônibus mais adiante, próximo à Via Paolo III. Um caçador de talentos,
representante de uma companhia de cosméticos, um homem muito bem vestido,
perfumado como uma senhora, disse que ela era quem ele estava procurando.
―
Eu sei mana, mas escuta, pensar mal é pecado, mas às vezes se adivinha. Não
digo que não seja possível... é que, bem, você nunca tinha se atrasado, a
senhora Costanza telefonou.
― Você é a
irmã mais velha, e eu respeito, mas é que você não viu: um cavalheiro tão
distinto, me mostrou o cartão dele, os portfólios da campanha... depois, é uma
grande companhia, eles querem um rosto de uma moça moderna, simples, não querem
mais o jeito de boneca das modelos profissionais...
― Manuela, o
papai sempre diz...
― Ah, você
sabe que papai e mamãe têm medo de fantasmas, sempre são contra as nossas
amizades, nunca nos deixam sair. O emprego do papai, as responsabilidades do
cargo do papai. É só o que sabem dizer.
― De qualquer
maneira, você não devia tomar nenhuma decisão antes de falar com eles. Prometa
pra mim.
― Sabe o que
ele me disse? Que eu poderia usar um nome artístico: Barbara Gregori. Não é
demais?
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