O monsignore está muito preocupado. Apesar
de ser o terceiro homem mais poderoso da Igreja Católica Romana, abaixo apenas
do Papa e do Secretário de Estado do Vaticano, ele tem motivos de sobra para
acreditar que suas três décadas de crescente poder na hierarquia eclesiástica
se encaminham para um ocaso vergonhoso. Isto se conseguir escapar da prisão. Da
janela da sua sala, situada no quarto e último andar do bloco central do
Palácio do Governo, observa os jardins defronte onde o brasão de armas da Santa
Sé está desenhado nos canteiros de grama milimetricamente aparada. Anela
possuir aquelas chaves cruzadas de ouro e prata que representam as chaves do
reino dos céus prometidas a São Pedro.
O arcebispo Casimir
Markevicius precisa mover as peças com extrema prudência no tabuleiro da
intrincada trama de política religiosa, finanças e poder mundano que ele mesmo
ajudou tecer. Aos sessenta e um anos, ainda exala saúde e ostenta a compleição
atlética que lhe valeu o apelido de “Gorila”; é um homem rico e influente, mas
descobriu dolorosamente que não é inatingível. Anda freneticamente em todas as
direções no seu gabinete, estrala os dedos das mãos, franze os ombros, sem
conseguir achar saída ou sossego. Febril, acredita ter atingido a perturbadora
lucidez dos patibulários: já ouvira falar dessa clareza mental que acomete os
que sabem que vão morrer.
Percebe que a
essência do seu ministério está fadada à incompreensão, seus modos, suas ações
e seus métodos não se coadunam com a santimônia afetada dos seus pares. Se o
futuro certamente o condenará, trata agora de evitar que o presente também o
faça.
― Pode-se
viver neste mundo sem se preocupar com o dinheiro? ― vocifera para as paredes ―
Não se pode dirigir a Igreja com ave-marias!
A madrugada do
dia 23 de junho de 1983 avança, mas, aquele que chegou a ser chamado de
“banqueiro de Deus” e “guarda-costas do Papa” não se deixa vencer pelo sono. Relembra
a infância pobre em Cicero, periferia sem lei da Chicago de Al Capone, relembra
o decisivo apoio do cardeal de Nova York e capelão militar dos Estados Unidos,
Francis Spellman, nos seus primeiros passos em Roma. Outros tempos,
mas a mesma santa cruzada: o bom combate. Spellman cuidara pessoalmente dos
financiamentos para evitar a infiltração comunista nos países da América do Sul
e da OTAN, como quando enviou milhões de dólares para a Democracia Cristã de Alcide
de Gasperi vencer as eleições italianas no pós-guerra imediato.
E qual
reconhecimento obteve este clérigo admirável? Ficar marcado pela apropriação do
dinheiro que os nazistas refugiados na América haviam roubado aos judeus. Em
nada importava o bom uso destes recursos? Não era verdade, como se lê na
primeira epístola de Pedro, que “a caridade cobre uma multidão de pecados”? Markevicius
era o vértice oculto de uma encruzilhada histórica: ajudara Montini, o
protegido de Pio XII, a se sagrar Papa depois do excessivamente liberal João
XXIII, evitara, após a morte de Paulo VI, que o intransigente Luciani iniciasse
um expurgo no Banco do Vaticano; Benelli, secretário de Montini e cúmplice no affair Luciani, não logrou o
pontificado, mas a solução de compromisso Wojtila mostrou-se acertada no
tocante à luta anticomunista.
Porém, a recente
falência do Banco Ambrosiano de Milão tinha o potencial explosivo de todas as ogivas
nucleares da Guerra Fria. Trapaceiros de variado calibre, políticos corruptos, capi da Cosa Nostra, empresários
inescrupulosos, nobres, maçons, prelados complacentes e Cavaleiros do Santo
Sepulcro viam-se assim sugados pelo buraco negro das finanças nada santas da
Igreja.
Há mais de dez
anos no comando do I.O.R. (Istituto per
le Opere di Religione, o banco da Santa Sé), na prática, Casimir
Markevicius gerenciava um banco off shore
em pleno centro de Roma, cujas operações financeiras ficam fora dos acordos
jurídicos e dos filtros antilavagem interbancários e internacionais. Um paraíso
fiscal que negociava com altos depósitos e retiradas em espécie, títulos do
governo italiano, ações norte-americanas falsificadas, contas numeradas ou em
nome de “laranjas”, fundações religiosas de fachada e... dinheiro da Máfia. O
rombo de quase dois bilhões de dólares do Ambrosiano expunha as entranhas de
uma engrenagem que servira, entre tantos propósitos abstrusos, para financiar o
sindicato Solidariedade na Polônia e iniciar a derrocada da Cortina de Ferro.
É necessário
fechar rapidamente o contencioso com o Ambrosiano de modo a minimizar os danos
de imagem e Casaroli, Secretário de Estado do Vaticano, estipula, junto a uma
comissão mista com o Estado italiano, uma indenização de 100 milhões de dólares
aos clientes do banco. Mas o poderoso cardeal se recusa a ressarcir a Máfia. O
arcebispo sabe que as famiglias têm
esse costume de mandar recados através de suas ações violentas. Dois envolvidos
no escândalo morrem em “suicídios” mal esclarecidos, então, vem o atentado
contra o Papa. O círculo de fogo se fecha; pela primeira vez, Markevicius não
consegue evitar um atentado contra a vida de Sua Santidade.
E agora, o
desaparecimento da menina.
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