Como
combinado, o signore Renato veio
buscá-la no ponto de ônibus depois da aula de música; Manuela despediu-se da
amiga que a acompanhava e embarcou na imponente BMW preta cuja porta um
motorista uniformizado lhe abria de quepe na mão. Pararam numa gelateria nas imediações da Ponte
Vittorio para se refrescar; os dois homens pareciam muito empenhados em detalhar
com ela cada passo do importante encontro marcado para mais tarde com Mister
Barkley, o representante da Avon
Cosmetics Company.
Renatino e
Pierluigi, o motorista, divertiam-na imensamente, principalmente este último,
com sua cômica magreza e a voz infantil a contrastar com o linguajar chulo de
forte sotaque ligúrio; aquilo que diziam tinha o poder inebriante de um licor
exótico: a entrevista em inglês com um americano importante, os milhões de
liras ― que ela se apressou a dizer que dividiria com os irmãos e os pais ―, as
futuras capas de revista, etc. Não conhecia aquele sentimento, uma doce euforia
que inunda a vida de possibilidades e tão facilmente se confunde com a boa
ventura.
Gravou uma
mensagem que entregariam à sua família para que se tranqüilizasse: nos próximos
dias estaria envolvida em importantes negociações, ocupada de tal forma que talvez
nem conseguisse telefonar para eles. A mensagem terminava com um recado para a
sua irmã preferida, Loretta.
― Fique feliz
por mim mana, nunca me senti tão bem, acalme papai e mamãe, você sabe como eles
são, vêem perigo em tudo.
Todos me tratam tão bem! Estou fazendo o que você sempre me
disse para fazer: ir atrás dos meus sonhos. Não tenho realmente necessidade de
um prazo para refletir, estou consciente do caminho que escolhi. Você pode
fazer a sua vida sem mim mais facilmente do que eu sem você; não precisa de
ninguém para construir o seu lugar no mundo. Comigo é diferente, me sinto como
as andorinhas a brincar no céu... penso muito no que você me disse um dia:
“quanta liberdade, por tão pouca responsabilidade”. Quando puder, volto e te
conto tudinho, Lori, agora eu sou Barbara, a Barbarella, recorda?
Na casa dos
Morandi o clima é de apreensão e terror naquela madrugada de quarta para quinta
feira. Emanuele, o pai, desmoronou na poltrona depois de dar os três únicos
telefonemas de que foi capaz: ligou para a polícia para comunicar o
desaparecimento; para Irmã Costanza, diretora do conservatório, pedindo para
ser imediatamente avisado caso alguma das colegas de aula tivesse informações;
e, finalmente, para o arcebispo Casimir Markevicius, seu chefe no Banco do
Vaticano. Confusamente, temendo as conclusões, ia juntando os cacos de
conclusão na sua cabeça; a reação do monsignore
deu a entender que o pior tinha acontecido: Manuela fora seqüestrada pela Máfia.
A polícia
sugeriu que esperasse, afinal, o mais comum nestes casos é que a menina
estivesse “passeando com amigos”.
Ele sabia,
sabia de tudo e não podia abrir a boca; se o fizesse, as coisas poderiam se
tornar ainda piores para a sua filha naquele momento. Sabia até o preço do
resgate ― que nunca seria pedido à família ―, duzentos e cinqüenta milhões de
dólares! Os filhos e a mulher estavam feito barata-voa pela casa, iam e vinham
até perto do telefone, paravam como se lembrando de algo, para retomar em
seguida a peregrinação aleatória com o olhar perdido. Ninguém dormia.
Emanuele Morandi
arriscara demais ao fazer da sua menina protegée
do todo-poderoso Markevicius; conhecia a fama do americano: fumava charutos
cubanos, freqüentava salões e academias de ginástica muito mais do que
sacristias, dividia a mesa com gângsteres e a cama com atrizes. A falência do
Banco Ambrosiano causara pesadas perdas nas finanças do crime organizado, e
eles agora buscavam reaver o dinheiro à sua maneira brutal. Do alto da torre
Nicolau V, onde tinha certeza de não ter seus telefones grampeados, o monsignore acionava sua multitentacular rede
de contatos; assegurando às famiglias
ítalo-americanas que faria de tudo para indenizá-los. Soube que a adolescente
estava nas mãos da Banda della Magliana, uma gangue romana chefiada por Enrico
de Pedis ― o Renatino.
Apesar do
apoio incondicional do Papa, que jogou seu prestígio para impedir a prisão do
arcebispo pelo governo italiano, ninguém conseguiu dobrar o implacável secretário
Agostino Casaroli, que já havia bloqueado a promoção de Markevicius à púrpura
cardinalícia. A Igreja não reconheceria as contas secretas da Cosa Nostra em
seu banco.
Dez dias
depois, durante o Angelus da missa, o
Santo Padre apelou aos captores de Manuela pela sua libertação. A hipótese de
seqüestro era admitida oficial e publicamente pela primeira vez.
― Ninguém
tinha me avisado que viria de Nova York para “fazer” uma criança... ― Donny
Gambalonga, o tal Mr. Barkley, é na verdade um killer americano designado para acompanhar a operação de cobrança
pelo clã dos Genovese.
― Se te faltar
o sangue-frio, cugino, nós mesmos
damos conta do caso ― De Pedis gostaria de resolver as coisas sem ingerências
externas, mas ordens são ordens.
― Hmm, estou
aqui para resolver problemas. É o meu trabalho. Se não fosse eu a fazê-lo,
seria outro... não me custa mais nem menos. É verdade que a garota era do
monsenhor?... Ok, acho que vou “brincar” um pouquinho com ela, antes.
Manuela
compreendeu finalmente a verdade. Como sucede mais ou menos a todo mundo, aprende-se
com a vida, mas sempre tarde demais.
― Vai doer
muito, quer dizer, quando...?
― Não, bimba, vai doer só durante um minuto.
Depois, passa tudo.
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