Todos
os dias despertamos numa realidade diferente do dia anterior; ao acordar,
nossos sentidos tateantes buscam o conforto dos objetos conhecidos, do lugar
habitual, de maneira a tornar menos traumática a passagem. Não há precaução
contra o imprevisível: agarramos qualquer velho pedaço do mundo de ontem para
conjurar as ameaças contidas na mais pacífica das manhãs. A mente apavora
diante do desconhecido ― embora secretamente deseje o novo ―, e por isso o
cotidiano se organiza como formas e métodos de domesticar a angústia de viver.
Rosa sabe que até as pedras mudam, e que algo nela mudou durante a noite
passada em claro.
Um
piscar de olhos, um bocejo, uma coçada de queixo, um voltar-se para o lado onde
não há nada que ver, assim provavelmente passou a linha divisória entre a
véspera e o dia do aniversário da Rosa; à meia noite/zero hora já só lhe
faltavam seis horas para largar o turno da noite na equipe de segurança do
Museu de Arte de São Paulo, o MASP. Não era a escala dela, trocara aquele
plantão com o Neno, o único amigo que tinha no mundo: um colega da terceirizada
que fazia a segurança do museu. Neno. Bom que ele tenha topado, vai poder
passar ficar com a família; quer dizer, vai passar o dia seguinte arrumando e
cozinhando, mas em casa.
Rosa
está fazendo cinqüenta anos. Sua vida está aos pedaços: o marido e os filhos se
afastaram, a família, há muito distante lá nas Alagoas; para completar, no trabalho
vê escassear os parceiros da velha guarda. O novo amigo é um desses jovens com
que agora divide os turnos. Uma figura e tanto para um membro de guarda
patrimonial: Neno é anão. Empresa grande, a lei obriga a ter cota. Por causa
dele, aprendeu uma das mais duras lições sobre a natureza das nossas relações
com a realidade, ou melhor, sobre a feição tantalizante do mundo: tudo nos é
ofertado, tudo nos é negado. E como se nos nega o que é ofertado? Simplesmente não distinguimos uma coisa da
outra.
O
mundo é uma mesa posta pela Tentação, cheia de inúmeros impedimentos e
embaraços no caminho das graças com que nos brinda. Neno deu de odiar
nordestino, solidificou ainda mais esta quizília trabalhando no turno
vespertino; muitos visitantes não se contêm diante do soldadinho, e há mesmo os
que chegam a perguntar aos monitores se o homenzinho faz parte da exposição.
―
Ói lá, pai, que da hora! Posso brincar com o anãozinho?
―
Moço, pode chegar mais pra perto da estauta? Só uma foto...
Estas
e outras quetais, fizeram-no passar a um nutrido ressentimento de classe. Por
outro lado, babava o ovo dos funcionários da casa e dos superiores da empresa de segurança.
―
Senhor Macedônio, estamos muito satisfeitos com o seu trabalho e da sua equipe.
―
Gostaria de anunciar que o nosso querido Macedônio Fernandes foi novamente
escolhido o funcionário do mês.
Eram
exatamente os mesmos que contavam piadas e não perdiam uma chance de mangar da
“grande” capacidade e estatura moral do iludido rapaz. Um dos curadores da
instituição chamou Rosa de canto certa vez para lhe comunicar uma incumbência
especial. Depois de lhe explicar os detalhes da mostra que se iniciava em
breve, o Professor Tassotti comentou:
―
Então Rosa, você aqui conquistou um respeito e confiança enormes... só te daria
um conselho de amigo, não leve a sério demais, é que queima o filme andar pra
cima e pra baixo com um anão. Não pega bem.
Rosa
se pergunta se não sofremos todos da mesma miopia, se os nossos falhos
instrumentos de navegação da realidade não brincam de enganar os sentidos
(vãos) que emprestamos à vida. Seja como for, ela intui que vive um paradoxo:
cada vez mais ela pinta a sua vida prática com as verdadeiras e duras cores do realismo;
ao passo que, em seu íntimo, ela sente que desliza irremediavelmente para o
delírio.
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