quarta-feira, 20 de junho de 2012

Rosa faz anos (parte 1)



            Todos os dias despertamos numa realidade diferente do dia anterior; ao acordar, nossos sentidos tateantes buscam o conforto dos objetos conhecidos, do lugar habitual, de maneira a tornar menos traumática a passagem. Não há precaução contra o imprevisível: agarramos qualquer velho pedaço do mundo de ontem para conjurar as ameaças contidas na mais pacífica das manhãs. A mente apavora diante do desconhecido ― embora secretamente deseje o novo ―, e por isso o cotidiano se organiza como formas e métodos de domesticar a angústia de viver. Rosa sabe que até as pedras mudam, e que algo nela mudou durante a noite passada em claro.
            Um piscar de olhos, um bocejo, uma coçada de queixo, um voltar-se para o lado onde não há nada que ver, assim provavelmente passou a linha divisória entre a véspera e o dia do aniversário da Rosa; à meia noite/zero hora já só lhe faltavam seis horas para largar o turno da noite na equipe de segurança do Museu de Arte de São Paulo, o MASP. Não era a escala dela, trocara aquele plantão com o Neno, o único amigo que tinha no mundo: um colega da terceirizada que fazia a segurança do museu. Neno. Bom que ele tenha topado, vai poder passar ficar com a família; quer dizer, vai passar o dia seguinte arrumando e cozinhando, mas em casa.
            Rosa está fazendo cinqüenta anos. Sua vida está aos pedaços: o marido e os filhos se afastaram, a família, há muito distante lá nas Alagoas; para completar, no trabalho vê escassear os parceiros da velha guarda. O novo amigo é um desses jovens com que agora divide os turnos. Uma figura e tanto para um membro de guarda patrimonial: Neno é anão. Empresa grande, a lei obriga a ter cota. Por causa dele, aprendeu uma das mais duras lições sobre a natureza das nossas relações com a realidade, ou melhor, sobre a feição tantalizante do mundo: tudo nos é ofertado, tudo nos é negado. E como se nos nega o que é ofertado? Simplesmente não distinguimos uma coisa da outra.
            O mundo é uma mesa posta pela Tentação, cheia de inúmeros impedimentos e embaraços no caminho das graças com que nos brinda. Neno deu de odiar nordestino, solidificou ainda mais esta quizília trabalhando no turno vespertino; muitos visitantes não se contêm diante do soldadinho, e há mesmo os que chegam a perguntar aos monitores se o homenzinho faz parte da exposição.
            ― Ói lá, pai, que da hora! Posso brincar com o anãozinho?
            ― Moço, pode chegar mais pra perto da estauta? Só uma foto...
            Estas e outras quetais, fizeram-no passar a um nutrido ressentimento de classe. Por outro lado, babava o ovo dos funcionários da casa e dos superiores da empresa de segurança.
            ― Senhor Macedônio, estamos muito satisfeitos com o seu trabalho e da sua equipe.
            ― Gostaria de anunciar que o nosso querido Macedônio Fernandes foi novamente escolhido o funcionário do mês.
            Eram exatamente os mesmos que contavam piadas e não perdiam uma chance de mangar da “grande” capacidade e estatura moral do iludido rapaz. Um dos curadores da instituição chamou Rosa de canto certa vez para lhe comunicar uma incumbência especial. Depois de lhe explicar os detalhes da mostra que se iniciava em breve, o Professor Tassotti comentou:
            ― Então Rosa, você aqui conquistou um respeito e confiança enormes... só te daria um conselho de amigo, não leve a sério demais, é que queima o filme andar pra cima e pra baixo com um anão. Não pega bem.
            Rosa se pergunta se não sofremos todos da mesma miopia, se os nossos falhos instrumentos de navegação da realidade não brincam de enganar os sentidos (vãos) que emprestamos à vida. Seja como for, ela intui que vive um paradoxo: cada vez mais ela pinta a sua vida prática com as verdadeiras e duras cores do realismo; ao passo que, em seu íntimo, ela sente que desliza irremediavelmente para o delírio.

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