No
mundo ― dizia Balzac ― não há nada que saia de um bloco único, tudo nele é
mosaico. Não obstante, a imagem que se conservou em mim dos avós de Bauru é
fotográfica; um cromo amarelado do álbum que mamãe guardou por toda vida e hoje
integra o meu acervo.
É como se eles
já não pudessem mais deixar as roupas e a idade que os sais de nitrato de prata
fixaram no Studio Photographico Cantarelli: meu avô Joaquim, a farta barba
hassídica a tornar mais fundos os olhos negros, as orelhas enormes, a calva coroada
pela penugem rala do cocuruto; veste um paletó de tecido escuro e grosso, igual
ao colete, a camisa branca de colarinho duro com as pontas dobradas como os
cartões de visita, encimada por uma gravata preta lavallière. Ao lado dele, a figura meiga, mas altiva, de Vó Nininha:
miúda, a boca fina a rasgar a suavidade do rosto com um ar zombeteiro, os cabelos
presos no coque simples; nela sobressai a graça diáfana do vestido claro de
mangas compridas, cheio de nervuras na frente, gola alta e debruada de
rendinhas, arrematado por uma pelerine sobre os ombros.
O mesmo não ocorre
com a casa em que moravam, esta, ainda agora posso percorrer de olhos fechados de
cima a baixo, cômodo por cômodo, palmo a palmo, aqui, conheço o conteúdo de
cada gaveta, o secreto perfume de cada recôndito; como se as reminiscências daquele
período nunca houvessem esmaecido e a arquitetura do casarão, há muito demolido,
resistisse em minha carne, ossos e nervos ― grão da imortalidade possível na
alma corpórea.
Casa que, na
verdade, era um palacete maciço de três pavimentos; bem ao estilo português,
erguido no limiar da calçada. No andar térreo ficava o porão, de altura regular
e plenamente habitável; o segundo andar era o plano nobre da habitação; no
terceiro piso, os dormitórios. Nestes andares superiores, duas varandas
simetricamente dispostas guarneciam a fachada principal; a primeira, ornada com
arcos apoiados em robustas colunas fuseladas; e a segunda com pilastras
pergoladas, cobertas por alamandas e buganvílias que subiam do quintal. Dois
portões laterais de ferro, de esplêndida serralheria, davam acesso ao casarão;
o da esquerda, mais estreito e ao nível do porão, levava às áreas de serviço e
edículas; o portão da direita, mais amplo, constituía a entrada principal. Ao
lado da entrada dos carros ficava a escadaria que conduzia à varanda do segundo
andar, pavimentada com ladrilhos hidrográficos e assentada sobre um largo
parapeito de onde apreciávamos o movimento da rua.
A única porta
utilizada para ingressar na casa era a que ficava na ponta final do terraço;
por ela se adentrava um pequeno foyer
que dispunha de janelas duplas com vidro fosco e um porta-chapéus em madeira
escura, cabides de prata e espelho de cristal. Pelas bengalas, sombrinhas, chapéus
e casacos ali pendurados, sabíamos imediatamente quem estava em casa no
momento. A partir deste compartimento abria-se um grande corredor que dividia a
habitação em dois corpos distintos ligados por cômodos sucessivos; do hall,
subia a imponente escadaria de dois lances em pinho-de-riga que conduzia aos
quartos. O pé direito do segundo piso, desmesuradamente alto, dava ao hall um
vão livre de cinco a seis metros, de cujo zênite um vitral despejava
caleidoscópicos reflexos amarelos, verdes e vermelhos. Seguindo pelo eixo
central, havia portas que abriam para a sala de estar ― a qual só uma vez vi
aberta para receber visita de grande cerimônia ― e a sala de jantar, o maior
cômodo e o centro afetivo da casa. O refeitório dava para o quintal através de
uma escadaria em curva; depois, sucessivamente, vinham a copa, o lavabo e a cozinha.
O pavimento
superior, reservado aos dormitórios, reproduzia a disposição do andar de baixo;
no corredor, o tique-taque contínuo do carrilhão, em cujo mostrador lia-se uma
frase em latim: tempus fugit irreparabile.
Situado acima da saleta da entrada, ficava o quarto que fora de mamãe em
solteira; a seguir, outro quarto, o de meus tios, e que servia de rouparia.
Marcantes eram as duas enormes cômodas desta rouparia, com gavetões da base à
face superior que pareciam feitos para gigantes; continham roupas de cama,
fronhas, lençóis, toalhas de mesa, rendadas ou adamascadas, recendendo a
cânfora em meio a bolinhas de naftalina. O quarto dos meus avós, logo a seguir,
tinha as dimensões da sala de jantar; por fim, vinham o banheiro e mais três
quartos, dois dos quais ocupávamos nas férias; no último dormitório, morava a
tia-avó Inácia.
Havia apenas
um banheiro no terceiro andar e bacias de ágata em cada dependência para as
abluções, mas sempre preferi o lavabo do corredor, onde fingia usar o sabonete
“de bola” dependurado a uma corrente junto à pia; dali, espiava de través o
quarto de Dona Inácia, a irmã mais velha de meu avô que o criara desde os seis
anos de idade depois do falecimento da minha bisavó. Poucos eram admitidos na
sua presença, e nunca crianças, visto que a nossa algazarra parecia incomodá-la
sobremaneira. Impressionava a nudez do aposento: apenas a mobília
indispensável, nenhuma gravura na parede, nenhum enfeite, sequer um tapete no
assoalho. A tristeza, companheira de toda a sua vida, vencera por fim;
magérrima, sempre de pijama, ora deitada na cama de patente, ora sentada na
cadeira austríaca de balanço a ler jornais, mantinha-se em obstinado silêncio.
Seus olhos vazios, nas poucas vezes que cruzaram com os meus, jamais pareceram
reconhecer minha presença. Hoje, visitado freqüentemente pelo cão negro da
melancolia, entendo afinal que infinito mirava aquele olhar.
O que nunca
alcancei compreender, e devo levar para o túmulo como enigma da vida inteira,
foi um episódio envolvendo a governanta daquela casa, Dona Mocica. Em tudo e
por tudo, era como um contraponto de Vó Nininha; miúda como ela, Dona Mocica em
todo o resto se lhe opunha: as feições duras, o ar marcial, as vestes sempre
negras, como se estivesse num luto eterno. Nunca a vi sorrir para ninguém,
assim como nunca soube o seu verdadeiro nome; sua única particularidade
conhecida era o orgulho que tinha do avô, oficial combatente da Guerra do
Paraguai. Morava no andar de cima da edícula situada no fundo do amplo quintal.
Ali, no espaço mítico que ia da garagem aos confins do galinheiro, se estendiam
os domínios do meu reinado; por aquelas bandas vicejavam roseiras, buxinhos,
crótons, dracenas, acalifas, damas-da-noite, manacás, jasmineiros, em deliciosa
anarquia.
Foi durante
umas férias de meio do ano, disso estou certo, pois era época de colheita do
café. Não lembro porque, parte de um dos carregamentos ficou estocada nos
fundos do casarão. Passei a tarde subindo e descendo as sacas empilhadas nos
“meus” vastos territórios, até que me dei conta de que, subindo pelos sacos de
aniagem rente ao muro da edícula, obtinha uma visão do quarto de Dona Mocica. Cooptei
meu primo Nando para a aventura; Nando, um ano e meio mais novo do que eu,
estava convencido que a pobre senhora era bruxa. Combinamos então uma expedição
noturna para surpreender o pretenso sabá. Chegada a hora, percebemos que a
escalada no escuro era bem mais problemática; por sorte, a unha-de-gato do muro
facilitou nossa tarefa.
Trepados nas
sacas que enchiam o ar com o cheiro do café, ocultos pelas sombras da noite,
devassávamos a intimidade da governanta ― e, assim, descobri o quanto a
realidade ultrapassa a mais louca fantasia. Eu e Nando não tínhamos idade para
saber o que era aquilo, mas sentíamos a estranha eletricidade que nos percorria
de alto a baixo: diante dos nossos olhos estupefatos, víamos aquela austera
senhora travestida de militar andando pelo quarto. Era o uniforme completo do
Regimento de Osório, tal qual o conhecíamos das figurinhas do sabonete Eucalol:
o boné de pala azul, o dólmã azul-ferrete, as dragonas douradas no ombro, o
cinto talabarte branco a combinar com as luvas, e as bombachas azuis, com as
botas de couro preto cobrindo-as até aos joelhos.
Dona Mocica
sorria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário