As posições
relativas haviam mudado subitamente; o homenzinho abandonara de vez o jeito
sonso de falar como quem pede desculpas por existir e agora exibia modos
desenvoltos e decididos, no limite da arrogância deslavada. Puxou uma cadeira
ao seu lado: ― Por favor, sente-se. Já que consegui um pouquinho da sua
atenção, podemos conversar civilizadamente...
― Muito que
bem, vamos começar pelo começo então: como é mesmo o seu nome?
― Josefel, um
seu criado... ― fez as palavras se acompanharem de um leve nuto, enquanto a mão
de unhas sujas afastava uma mecha de cabelos da testa.
― Ok, voltando
à vaca fria: onde foi que você pegou isso? ― Cyonil percebia com raiva vazante
que o camarada acariciava a cigarreira com seus dedos curtos e roliços.
― Bom amigo, a
verdadeira questão, me parece, é onde você
pegou isso...
― É uma
espécie de jogo, o que estamos...?
― Não. É uma
espécie de acordo que eu estou tentando chegar com você... mas tem de haver um
pouco mais de, hã, confiança mútua...
― Que tal um
pouco de papo reto? Chega de dar volta, de conversinha mole, essa cigarreira
não lhe pertence!
― E muito
menos pertence a você! Já que pediu, vou lhe dizer: estava bem escondida, no
fundo da garagem, dentro daquelas caixas seladas onde ficam as ordens de
serviço antigas e os recibos... tá tudo guardado na prateleira mais alta, sua
mulher nunca entra aí porque é meio que a sua oficina de consertos. Você não
deixa ninguém limpar aquele lugar faz anos...
Royal straight flush, o rosca não estava
blefando. Cyonil levou uns largos minutos para recuperar o fôlego, o coração
parecia ter ficado suspenso entre uma batida e outra, o estômago, retorcido como
um nó de balão de festa; uma serpente gelada havia descido pelas suas costas e
entrado no seu cu. Pediu uma caninha ao garçom. ― Você é... da polícia?
― Claro que
não, nada a ver. Garçom, traz também mais uma breja pra mim junto com a
branquinha dele, por favor...
― Se não é
cana, como é que foi entrando assim na minha casa, mexendo nas minhas coisas?
― Do mesmo
jeito que você: vai instalar o cabo, ou dar manutenção no decodificador, entra
na casa dos outros, vê o que quer... e pega. Não é assim que você faz?...
― Que é que
você quer de mim? ― tremia, babava; derramou cachaça na gola, parecia um caco
de gente, um menino assustado nas mãos de um homem que nunca tinha visto na
vida.
― Vou abrir
meu coração pra ti... não sou moralista, não é do meu feitio julgar ninguém, só
vim aqui propor uma cutruca: te devolvo o que peguei de você, e você me paga o
que deve...
― Pagar o quê?
Você já falou isso uma pá de vezes, mas não consigo entender.
― Dá uma boa
olhada ― o cobrador começou a tirar de um saco vários objetos: um relógio
Hublot, um anel de ouro, um vidro de perfume azul com filigrana prateada, um
broche com dois topázios, um açucareiro de porcelana St. Cloud, uma espiriteira
de prata, uma estatueta Tanagra, um iPhone, um jogo de descanso de copos, um
peso de papel em cristal millefiori ―,
acho que são seus, ou melhor, não eram, mas passaram a ser...
― Você...
pegou... tudo!
― Pois é, anos
de “trabalho”, de risco... um risco calculado, certo, mas que exigiu uma boa
dose de ousadia e sangue frio, não se pode negar...
― Quanto? ― de
repente, Cyonil saiu do transe que o obnubilava; decidiu partir para o tudo ou
nada.
― Como assim,
quanto?...
― Quanto você
quer? Você está aqui por algum motivo...
― Ah, meu amigo,
sempre chega essa hora, não há um que não tente me comprar... entenda, não é
que eu seja incorruptível, muito ao contrário até, mas acontece que recebo
ordens de cima como todo mundo; se não puser na tua bunda, põem na minha... Você
nunca dançou até agora por quê? Lembre: houve uma combinação, um acordo, e o
combinado não é caro...
― Se não é
dinheiro, você quer o quê então?
― Promessas.
Sou um cobrador de promessas...
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