Se existisse
realmente o concerto das nações, a nossa se distinguiria altaneira por uma
série de realizações civilizatórias; e entre estas, certamente haveria um lugar
de eminência e destaque para a gambiarra. Decerto que a gambi não é
exclusividade nossa ― está aí o MacGyver que não me deixa mentir ―, como a jabuticaba
e o saci-pererê, e bem pode ser que a maioria dos compatriotas não a considere
o elemento definidor, o salientibus punctum,
do caráter ― ou da falta dele ― nacional. Sempre que, por falta de tempo,
meios, paciência ou vontade, um determinado problema não pode ser resolvido
adequadamente, lançamos mão da gambiarra; a gambeta é a invenção parida a
fórceps pela necessidade, o estalo que vem a toque-de-caixa na pressão do
momento, tanto é assim, que a crônica de empreendimentos complexos como as arriscadas
navegações da era moderna e a conquista do espaço, é rica em exemplos da capacidade
de improviso daqueles avisados desbravadores. Este admirável vocábulo, de
obscura origem celta, que a principio designava simplesmente a extensão
elétrica irregular, universalizou-se a tal ponto entre nós, que passou a
conotar nosso arraigado hábito de cambiar o comme
il faut pelo quebra-galho ad hoc.
A solução meia-boca de dificuldades emergenciais é tanto testemunho de solércia
quanto de indolência; um desavergonhado tributo que o direito paga ao torto,
pois que a gambiarra absolutiza o particular, celebra a apoteose do provisório,
torna definitivo o precário, o interino, entronizando cinicamente o truque, o
remendo, a tamancada, o tapa-buraco, o funcionamento à meia-bomba e o colado
com cuspe, em detrimento das atitudes e expedientes escorreitos. Os nascidos
sob esta estrela transitiva soem amalgamar criatividade e acomodação,
inclinando-se a tolerar graus mais elevados de impermanência, esculhambo e
deboche; a ética do “dar um tapa”, a práxis do “dar uma garibada”, desembocam
naturalmente no “deixa estar para ver com é que fica”. Viver sob a égide da
gambiarra é enganadoramente cômodo, fluido, afetuoso, desconcertantemente
cordial; pode-se afirmar, sem exagero ou falsidade, que ninguém transforma o
capricho em norma por acaso, sina, ou destino manifesto ― é sempre uma questão
de escolha, inconsciente ou não. Porque nem sempre o “jeitinho” ajeita, mas a
gente faz que.
Pois foi na
base da gambiarra que tudo se arranjou. Afinal, Estelamaris era uma mulher
completa em seu pragmatismo, raciocinava com todos os órgãos vitais: cabeça,
coração e sexo. Não necessariamente nesta ordem.
Aureliano não
tinha mesmo para onde ir; estava sem um gato pra puxar pelo rabo, os poucos
parentes que lhe restaram moravam no interior, e ainda havia toda a série de
trâmites legais da nossa nunca assaz louvada burocracia: provas de vida,
anulação de óbito, exames, certidões mil, exumação do corpo, translado para
Curitiba, etc., etc. Instalaram-no na edícula do sobrado e a vida seguiu. Estelamaris,
essa, andava feliz como um pinto no lixo: recuperou seu sócio na administração
da mercearia, o pai dos filhos dela voltou a pôr ordem na casa... e ainda tinha
o Ascânio. Cada vez mais esquecido por todos e sem função, o pobre circulava
pela casa transparente como um morto insepulto. Ou melhor, quase sem função,
porque pra trepar ele servia muito bem. Ô se não...
Ninguém sabe
dizer como foi que aconteceu, simplesmente se deu, e depois era como se sempre
houvesse sido assim. Ascânio mudou-se para a edícula, e Aureliano foi dormir no
sofá da sala; por pouco tempo, já que logo reassumiu seu antigo lugar na cama
do casal. Estelamaris até se esforçava para ser politicamente correta, mas a
consistência da carne e o aspecto do primeiro marido lhe davam engulho ao
transar com ele. Fazia por obrigação, a bem dizer. Nestes particulares, gostava
mesmo era do impiastro do Ascânio; parecia que quanto mais inútil ele se
tornava, melhor ficava a foda. Não perdoavam feriado nem dia santo, quando lhes
dava na veneta, iam lá pro quartinho e sentavam a ripa: berravam, bufavam,
punham-se a ganiçar, a cama estreita rechinando feito égua barranqueira; e
ainda por cima, Estelamaris só gozava disparando um chorrilho dos piores
palavrões.
Aureliano
ficava pior que estragado nesses dias, cara de cão chupando manga. A mãe dela
logo veio pôr cobro na fuzarca.
― Tetela,
minha filha, assim não pode ser; tu morar com dois homens, isso é vida? Olhe
que o povo comenta, fala coisas...
― Deixa falar,
mãe. Sentar em cima do rabo pra falar do rabo alheio é o esporte mundial do zé-povinho,
agora, me fazer um supermercado ninguém quer... todo mundo vê as pingas que eu
tomo, mas ninguém vê os tombos que eu levo; ou ao contrário, sei lá, nunca sei
qual é o vice e qual é o versa dessa frase... Quero que se lasque, a língua
desse povo é mais comprida que a avenida Sapopemba, mas pagar minhas contas
ninguém quer, né?, os meus boletos tão sempre lá, chegam todo mês... não tem
isso não, mãe, comigo não tem coré-coré: eu que pago os músicos, eu que escolho
a música. Na minha casa mando eu!
Não teve
jeito, assim como estava, ficou.
Domingão de
tarde, Estelamaris foi tirar um “cochilo” no quartinho do Ascânio. Em breve a
casa se enchia daquele caramunho que tanto deprimia Aureliano. A filha
trancou-se no quarto dela pondo o som no máximo; o filho, sentado nos degraus
da escada da frente, cortava as unhas. Aureliano acompanhava a operação com
interesse, ficou satisfeito com o resultado.
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