Domingo, 31 de dezembro de 2000.
1. REINALDO ANGELIM 19:05
Reinaldo
Angelim está na cama lutando com o sono acumulado de um fim de semana de
esbórnia intensiva e trampo a meia-bomba que começou na sexta feira e só deve
acabar na segunda, isto é, se o mundo não acabar junto com a contagem
regressiva de logo mais à meia noite. De um tempo a esta parte, deu de lembrar
as palavras terríveis que a sua avó repetia incessantemente antes de morrer:
“Ao dois mil chegarás, do dois mil não passarás”.
Sempre
é possível que uma dessas profecias apocalípticas esteja certa, embora o tão
anunciado bug do milênio ainda seja
motivo de gozação passado um ano do fiasco. Um rio Amazonas de tinta e bytes havia
corrido, anunciando e garantindo aos quatro ventos e cinco continentes, que o mundo
ia se acabar, os computadores (burros calculistas que são), recuariam ao começo
do século vinte, zoando planilhas, cancelando dívidas, zerando sistemas
bancários, paralisando empresas, desligando hidrelétricas, abolindo regras
morais, dissolvendo casamentos, e... nada.
Não
rolou nada de nada em lugar nenhum do mundo, só caiu uma buta chuva do baralho
que lhe arruinou o réveillon em Mongaguá.
O
problema do mundo é que ele não acaba, ou melhor, acaba, mas aos pouquinhos, em
suaves prestações que cabem no seu bolso. Como sempre, o mundo só acaba mesmo para
aqueles que se vão, como a sua avó, há cinco anos, e o seu pai, há quase dois.
Perdas difíceis, que ele e a mãe suportam mal e mal, levando como podem.
Desperto? Durmo? Continuo a sonhar, ou
acordo pra dentro deste jantar de pesadelo que a minha mãe está armando? Should
I stay or should I go? Todos os
funcionários do condomínio que estão de serviço neste fim de semana vão passar
a virada aqui em casa: o porteiro e o jaburu da filha, os seguranças, o
jardineiro mala, junto com a mulher mala e os pimpolhos, maletinhas idem ibidem.
Credo. Triste ver a mãe se esforçando pra manter uma ilusão de festa familiar...
rabanadas, maionese fria, doze passas, contagem regressiva na tela da Globo,
brinde com sidra, abraçar gente que não gosto... de deixar o saco na lua!
Reinaldo e a
mãe moram no Sunrise Village, condomínio de casas de luxo espetado entre um bairro
nobre e uma favela onde o pai funcionava como um faz-tudo; até que os moradores
resolveram construir um puxadinho na área comum, fazendo do faz-tudo um
conveniente caseiro vinte quatro horas à disposição. Com a morte dele, atropelado
num ponto de ônibus, a mãe assumiu o posto do marido dando conta do recado
galhardamente. O difícil para ela era dar conta do filho.
"Naldo,
você não vai levantar? Vem me dar uma ajuda na cozinha, vem...", pelo
menos ela não ousava entrar. Falava atrás da porta do quarto dele.
"Já vou
mãe, só mais um pouquinho", a última noite do mundo não prometia grande
coisa para um rapaz de vinte anos, durango kid, e sem muitos amigos no seu
pedaço.
2. ZABA 19:07
"O
governo filipino anunciou hoje que vai aceitar a ajuda dos Estados Unidos na
investigação dos atentados em Manila. Cinco bombas explodiram ontem na capital
das Filipinas matando quinze pessoas e ferindo outras noventa e cinco. Um
hangar no maior aeroporto da cidade, um hotel de luxo, um trem, um ônibus e um
parque próximo à embaixada americana foram os alvos das explosões simultâneas, ocorridas
por volta do meio dia, hora local. Embora nenhum grupo terrorista tenha
reivindicado os atentados até o momento, as suspeitas recaem sobre o movimento
separatista islâmico Abu Sayyaf."
O
rádio despejava as incessantes notícias do mundo, que insistia em não parar às
vésperas do último réveillon do milênio. Mas ela não conseguia prestar atenção.
Estava rodando de carro pela cidade há duas horas, sem rumo e sem atenção; feito
um autômato, parava nos semáforos, engrenava as marchas, freava, virava à
esquerda ou à direita indiferentemente, em estado de choque.
O
século vinte se despedia, e a vida de Zaba desmoronava repassando na sua mente como
um videoclipe em loop infinito.
Executiva-chefe
e herdeira da holding dos negócios da família, camelava de segunda a segunda em
reuniões e viagens — enquanto os dois irmãos e a irmã se esfalfavam na
temporada de polo, nas corridas de rally e nas colunas sociais. Pelo menos não
atrapalhavam: deram-lhe carta branca pra gerir as empresas em troca de gordas,
e sempre insuficientes, mesadas que torravam em (des) ocupações fúteis e inúteis.
Trabalhara
até o último dia do ano, conseguiu pegar a ponte aérea mais cedo só para fazer
uma surpresa ao namorado. Por telefone, do Rio de Janeiro, organizou a festa de
fim de ano na sua casa, a qual passou a dividir com Nino há seis meses. Chegou
do aeroporto, nem passou para deixar as malas e foi encontrá-lo. Sem avisar.
Estacionou
sua Off Road na academia e, de repente, lá estava o Nino, ali, na garagem.
Que estranha posição a dele, braço apoiado
numa coluna, parece debruçado sobre alguma coisa...
Aproximou-se
discretamente andando pelo meio dos carros. Nino acariciava os cabelos de uma
menina em roupa colante de lycra, falava-lhe ao ouvido coisas que não podia
ouvir. A mão apoiada na coluna desceu, boba, pelo flanco da moça até abarcar
uma das nádegas.
A personal, o estafermo do Nino tá pegando a
nossa personal trainer! Como é que eu não vi? Quando será que isso começou? Como
você é trouxa, Zaba! E ainda fiquei de mal com a Renatinha porque ela tentou me
avisar... Filho de uma puta, mil vezes filho da puta! Cagalhão! Dei a chave da
minha casa, a minha casa!, prum calhorda desses... onde que eu tava com a
cabeça?
Foi
se chegando quase em querer, precisava muito ouvir.
"Preciso
mesmo ir?", ela perguntava, lançando a cabeça para trás e refazendo o rabo
de cavalo do cabelo.
"Por
mim, vai por mim. Não suporto os amigos dela, sempre falando de dinheiro,
viagens, compras... uma gente chata e metida a besta que só. Além do mais, a
Zaba te adora, você sabe", Nino falava, enquanto a sua mão percorria
livremente o corpo da moça.
"Aí
que tá o problema, não gosto disso, me sinto uma falsa, uma traíra. Quando é
que você vai sair da casa dela?"
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