sexta-feira, 29 de março de 2013

O último fim de mundo do milênio (IV)




7. METALEIRO 19:15

            “Que-que-que ca-ca-cagada do carai, do-dois pi-pi-pneu estorado, mano!”, Calunga, o gaguinho do rolê, tartamudeava resmungão no seu dialeto de sílabas truncadas sentado no meio fio.
            “Só nóis cruzar esse alemãozinho de novo pr’ele ver o sacode que vai tomar, vô virar ele do avesso, fazer o cu dele sair pela boca... playboizinho de merda!”, Marquinhos Paraná praguejava agitando a camiseta para os carros desviarem na pista, enquanto Quilô empurrava o pau-velho até o posto de gasolina mais próximo.
            O líder planeja no início, antes de começar a agir.
            Único a permanecer dentro do Monza, o chefe mantinha o controle do volante ouvindo as rodas ferir o chão durante a subida rumo ao Seven Eleven. Um contratempo fodido: deu pra trocar o estepe, mas ainda faltava uma câmara pro segundo pneu. Achar um posto de serviços aberto àquela hora, domingão, último dia do ano, já não tinha sido mole, que dizer de um borracheiro? Metaleiro destacou o Velho e o Berinjela pra irem na captura.
            Já tamo atrasado pra caralho na ponta marcada com o Doutor Jordão. Esse velho papa-óstia é pior que furúnculo no rabo, mas pode adiantar muito o meu lado. Não vou desistir de passar na mansão mal-assombrada, nem que chegue lá meia noite!, quero ter as passagens e os ingressos na mão ainda hoje, senão, não vai ter arrego.
            Metaleiro era um sujeito acima da média, e sabia disso. Tipo aquele carneiro que levanta a cabeça acima do rebanho e enxerga alguns palmos à frente do resto ― um ciclope em terra de cego, mas capaz de usar todo o alcance da vista única. Descobrira em si próprio o talento gerencial e o desenvolvia pacientemente, aliando a pertinácia com a ambição; plenamente consciente de que a sua expertise é a mais valiosa desde que a humanidade aboliu a primeira versão da lei do mais forte: sabe que a força está do lado daquele que exerce controle sobre os outros. Metaleiro é um gestor de recursos humanos, um administrador de grupos, líder hábil e agregador.
            O verdadeiro método, quando se tem homens sob as suas ordens, consiste em utilizar o avaro e o tolo, o sábio e o corajoso, em dar a cada um a responsabilidade adequada.
                        Tinha lido a Arte da Guerra de Sun Tzu numa edição vagaba que se desfez antes de chegar à página sete do livro, mesmo assim, conseguiu decorar uma meia dúzia de frases nas quais pensa constantemente, sem, contudo, compartilhá-las com os manos da sua quebrada. Fazendo uso de meio neurônio, entendeu que no seu pequeno grupo de comandados dispunha de uma unidade compacta de soldados, e oficiais capazes de constituir o que o general-filósofo chamava de estado-maior. Os cinco que o acompanhavam formavam justamente o núcleo duro da sua falange; Metaleiro precisava tirar as meias sem tirar os sapatos, ou seja, transferir know how para que eles pudessem se apropriar das táticas de suas conquistas, sem, no entanto, discernir a estratégia que gerou as vitórias; na prática, significava abrir para a elite dos manipulados uma parte dos segredos do manipulador ― algo tão difícil quanto ensinar o truque sem estragar a mágica.
            Esses cinco mano é o que tem pra hoje, quando estiverem prontos, vão trazer outros, que depois trazem mais outros. Pela ordem. Um exército de mané e zé-ruela tocando o terror, o pesadelo da burguesia. É assim que é, mano, mas vai ser osso impregnar as idéia dessa rapaziada sem noiar demais o Tico e o Teco. Vamo ver: tem o Quilô, de quilômetro, forte como uma besta, e besta como uma besta; aí o Velho, o que fala menos groselha deles todo; o Marquinho Paraná, trafica e roleiro; depois, vem o Calunga, nosso irmão das bombas e dos fogo; ah, tem o Berinjela que, bem... o Birinja é o Birinja e pronto! A gente dá o perdido pra não trazer ele no rolê, mas o mala sempre cola nas parada que nós tá, aparece ninguém sabe de onde, e vai ficando...
            Encostado na mureta da loja de conveniências, espera pitando uma guimba. Passou o tempo em que seguia os cabeças da Independente, pensa que chegou a hora de formar a sua própria organizada, com estatutos, regras e objetivos próprios ― os seus. Na visão de Metaleiro, uma torcida organizada não deveria fazer demais o jogo da imprensa, nem obedecer demais à diretoria do seu time; na sua avisada opinião, as maiores agremiações de torcedores são mais cortejadas pelos políticos, sempre atrás de currais eleitorais, sacrificando da autonomia no processo; porém, um grupo menor, mais bem coordenado, com o rabo menos preso, estará mais apto às ações que necessitam de maior ousadia. Um bom exemplo é o acerto que está prestes a fechar com o Doutor Jordão.


8. NATASHA 19:00

            “Meu nome é Natasha,
            uso saia de borracha,
            meu negócio é bolacha,
            entro na balada na faixa”
            Diante do espelho de três folhas do camarim, iluminada por uma guirlanda de lâmpadas feéricas, Natasha se maquia metodicamente usando seu melhor equipamento: um estojo importado da Sephora. De vez em quando, ri sozinha lembrando a falseta dos amigos da cena S&M.
            Saia de borracha, uma ova, hoje vou trabalhar toda emborrachada!
            Ela gosta de precisão, se corrige mentalmente, seu figurino para a sessão de logo mais com o professor Camarinha praticamente não inclui borracha: botas de couro com perneiras acima do joelho, collant de corpo inteiro em suplex, touca com máscara cobrindo olhos e nariz, chicote de couro com nove tiras, sobretudo em vinil elastizado com ultra brilho... e a super maleta metalizada das mil e uma malvadezas, único acessório a fugir do pretinho básico.
            Termina de aplicar o corretivo de olheiras e começa a espalhar a base pelo rosto; confere o resultado no espelho, retoma suas reflexões; decididamente, está numa veia filosófica nesta noite. Talvez influenciada pela profissão do último cliente do ano.
            O professor é o tipo de cliente que eu gosto: sabe o que quer, não é novo no babado, tem método, é discretíssimo, não freqüenta as baladas e festas privê do mundinho (detesto misturar prazer e trabalho), e, o melhor de tudo, paga bem.
            Confere o relógio digital ching-ling na cômoda, impulsiona a cadeira giratória com os pés para alcançar o pote contendo pó no tom da sua pele muito branca; Natasha desliza seu corpo esguio pelo estúdio multiplicado no reflexo triplo do boudoir. No rosto de traços afilados, maçãs salientes e delicado queixo pontudo, vai desenhando aos poucos uma máscara de sedução e implacável Nêmesis. O personagem que compõe é uma mistura da Trinity, de Matrix, e da Mulher-Gato.
            Não se pode entregar só o que o cliente pede, convém dar um toque pessoal. A fantasia do pervo deve ser rigorosamente montada no aspecto luxúria, mas pequenas surpresas no décor são indispensáveis. É o que separa o poser do grande artesão da dor.
            Aproxima a face do espelho para traçar uma linha reta e fina em torno dos olhos com o delineador; depois, pincela cuidadosamente duas cores de sombra nas pálpebras; com a esponja, dá uma esfumada na tonalidade obtida e compara ambos os lados. Perfeito. Adiciona a máscara para cílios e aplica os postiços: um olhar imperioso em tons de azul e cinza.
            Trepada straight, fodinha missionária, posição papai-e-mamãe, são que nem feijoada com sabor baunilha; uma boa bosta! Sexo só é sexo quando é kinky, quando tem fetiches, escravos, carrascos,  algemas, pancadão...
            Dedos longos e unhas postiças despontam das luvas brancas com aplicações de strass. Finaliza com um banho de perfume Salvador Dalí e um toque de Lolita de Lempicka. Sim, Natasha é lenda, mito, na comunidade BDSM (bondage, dominação/submissão, sadomasoquismo). A melhor dominatrix que um masoquista pode encontrar em São Paulo.
            “Sexo são, seguro, sensual e consensual”, seu lema virou bordão no métier.

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