domingo, 24 de março de 2013

O último fim de mundo do milênio (III)



5. DOUTOR JORDÃO MURGEL LIVIEIRO NETO 19:12

            O condomínio horizontal Sunrise Village é, na verdade, um micro-bairro fechado que parodia os afluentes suburbs (norte) americanos dos anos oitenta: sobrados de dois ou três pavimentos pintados em inevitáveis tons pastel, inverossímeis telhas de ardósia, típicas esquadrias e requadros brancos, sem falar do indefectível jardim de frente, cujas roseiras baixas se continuam nas laterais em sebes de cercas-vivas igualmente baixas rumo aos fundos da casa, onde se localiza a infalível piscina. Encapsulado por altos muros guarnecidos de cerca elétrica e câmeras de vigilância, o Sunrise possui três ruas com pavimento de concreto que saem da portaria serpenteando rumo a uma pequena rotatória que abriga a área comum: playground, sede social para as reuniões condominiais e a casa da zeladora.
            Todas as casas refletem o espírito yuppie tardio que animou o empreendimento imobiliário de meados dos anos noventa, menos uma, a do Doutor Jordão. Viúvo e sem filhos, o doutor era dono do terreno que deu origem ao loteamento; o palacete neoclássico ― no qual parece mais se esconder do que morar ― exibe uma sobriedade, e até mesmo um ar severo, em aberto desacordo com o estilo dominante. Não há varandas, sacadas ou decks; no jardim, em vez de parterres floridos, buxos e murtas; para ornamentar a fachada, ao invés do refresco das onipresentes primaveras, hera e ciprestes; as poucas janelas, permanentemente veladas por pesadas cortinas; piscina, necas. Os vizinhos apelidaram o curioso edifício de ‘Mausoléu’.
            Primeiro o homem faz a casa, depois a casa faz o homem, dizia Le Corbusier; mas, no caso, dava-se antes o contrário: a moradia espelhava plenamente os modos e rebus austeros que permearam toda a vida do seu dono; mais precisamente ainda, aquela era uma reprodução da casa onde ele passara a infância. Impedido de morar na mansão dos pais devido a uma longa disputa na partilha da herança com o irmão, resignou-se em habitar uma réplica construída sobre o terreno da chácara que pertencera à família. Um acordo com a incorporadora o isentava de pagar a taxa de condomínio, obtendo, assim, o menos pior dos mundos: segurança subsidiada em troca do decréscimo de autenticidade e exclusividade. São os ônus que a vida impõe, os vizinhos o detestam pelo seu esnobismo misantropo, e ele despreza o novo-riquismo e ostentação deles.
Doutor Jordão provinha de família quatrocentona, era homem circunspecto, profundamente piedoso, a tal ponto, que abdicara do exercício da medicina para se dedicar às obras de caridade e religião. Muito mais do que o aspecto exterior, a decoração do palacete semelhava ao claustro: escuros lambris de madeira dourada cobriam as paredes de alto a baixo; por todo lado, oratórios, estátuas de santos, ostensórios, turíbulos, brilhantes candelabros, genuflexórios de madeira de lei, riquíssimas banquetas de fina prata, lustrosas alfaias de damasco, tissos de resplendente ouro; e, dominando a sala de visitas, a peça principal, um armário de 1943 com vidraçaria centenária, executado pelo Liceu de Artes e Ofícios, contendo suas mais preciosas relíquias: um solidéu do papa Pio XII e dois certificados de bênçãos do papa João Paulo II.
Uma bela carreira a serviço da fé católica, passada em irmandades, ordens terceiras e confrarias, participando ativamente como leigo na organização da vida religiosa, na assistência aos doentes e sofredores, havia levado o doutor a escalar os degraus hierárquicos da fraternidade mantenedora de importantes hospitais da cidade: de benemérito passara a irmão remido (após trinta anos), mesário, vice-escrivão e, atualmente, mordomo. Mas isto não esgotava a personalidade do venerando esculápio, sua outra paixão o absorvia igualmente, passionalmente: o São Paulo Futebol Clube, glorioso tricolor do Morumbi, do qual era conselheiro vitalício.
Naquele último dia do ano marcara duas reuniões relacionadas aos dois cargos que ocupava, mas a primeiro compromisso já estava atrasado em mais de uma hora.
Onde diabos andarão aqueles meliantes da Independente que não chegam? É o que dá lidar com essa escória, devem ter se metido em confusão, ou então, o que dá no mesmo, estão se enchendo de cachaça n’algum mafuá...E não atendem o celular, nada funciona hoje,cáspite!


6. MATHEUS BUCALEM 19:14

            O cenário de guerra, envolvido pelo frio extremamente rigoroso do inverno, caíra num marasmo aparente, porém, um soldado não pode ficar imóvel, entrincheirado à espera da luz do amanhecer. O ar escurece, o termômetro baixa, o vento sopra rijo e cortante, o chão cobre-se de lama, mas há movimento e atividade por perto.
            Bom que tenho os óculos de visão noturna, mas estou sem a porra do defuser, o kit de desarmamento de bombas! Se achar uma das duas, vou ter que chamar alguém, hmm, isso pode denunciar a minha posição...
            Matheus acompanha o deslocamento dos companheiros de infantaria, a metralha troa incessante contra eles enquanto realizam a incursão nas linhas inimigas. O combate não cessa, não se interrompe o consumo de munições, gente não pára de morrer; nada se decide, cada um dos adversários procura com ardor fatigar e enfraquecer o outro.
            Tiros. As balas arrancam pedaços do muro poucos segundos depois de ele passar, calcula que haja dois terroristas escondidos entre as ruínas do vilarejo semi-destruído por onde se desloca cautelosamente. Sente a adrenalina encharcar o seu corpo, desencadeando uma agitação feroz que impele à ação imediata; mas não pode se deixar dominar por isso agora: agir por impulso pode lhe custar muito caro.
            Buzanga! Essa tirou fina do meu capacete, de certeza que tem pelo menos um sniper muquiado por aí.
            Armados de rifles Magnum AWP, os atiradores de elite são uma preocupação constante nesta fase de conquista do terreno, de luta homem a homem, olho no olho. Engatilha a submetralhadora. Sente a mão suada no contato com a coronha; não há tempo para arrependimentos nem orações, escolheu estar ali, escolheu aquela forma de vida e vai levá-la até às últimas conseqüências.
            Naquele momento é invadido por uma recordação involuntária: vem-lhe à mente a história do famoso aviador francês Georges Guynemer. Exímio piloto de guerra, Guynemer tornara-se uma lenda das batalhas aéreas da Primeira Grande Guerra após abater inacreditáveis cinqüenta e três aviões inimigos; condecorado com a cruz da Legião de Honra, perguntaram qual medalha ainda lhe faltava ganhar: “a cruz de madeira”, respondeu. Morreria pouco depois em combate.
            Então, o inimigo. Meio encoberto por uma parede derruída, Matheus vê as pernas de um adversário descendo cuidadosamente os degraus de uma escada de pedra. Faz pontaria.
            O cabação tá com a Kalashnikov abaixada, que baita vacilão! Foi mal aí véi, antes você do que eu...
            Prrap-pap-pá. Três tiros, um no alvo.
            Merda!, me precipitei, só acertei a perna. O cara conseguiu se arrastar para fora do campo de visão. Merda! Vai ser foda desentocar ele agora... podia ter esperado que ficasse por inteiro na alça de mira!
            Mas não era desprezível a vantagem que obtivera: ferido, o inimigo teria muitas dificuldades para escapar; se a refrega alertou os demais terroristas, também avisou seus colegas, os Capacetes Azuis. Precisava agir rápido, sem descuidar dos campers escondidos nas redondezas.

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