Há
uma metade do nosso corpo que nunca se adestra e coabita em nós como passageira
clandestina de um lotação idem ― em geral, é o hemisfério canhoto a permanecer estabanado
e indispensável pela existência a fora. (Embora isto não se aplique perfeitamente
aos chamados sinistros, ou os que, como eu, alternam as lateralidades de perna,
pé, mão e orientação política). Como num espelho de circo onde nossa imagem se
confunde, derrubamos a chave, desaprendemos o nó, mudamos de caligrafia,
erramos o salto parecendo grogues. Assim, dissimétricos, fomos nos construindo
e sendo construídos: a atitude de resguardo à integridade, um certo atabalhoamento
destruidor do ambiente, a auto-percepção desproporcionada da motricidade fina.
Nosso lado canhestro move-se como um astronauta na lua, saltando bêbado de
leveza, derrubando alegremente o que encontra no caminho, eternamente indeciso
entre bagunçar e servir.
Isto
me ocorria difusamente naquele exato instante em que ajeitava a alça da mochila
sobre o ombro esquerdo. Tinha acabado de sair do avião, atravessei o finger marcando passo no meio da
multidão de passageiros e me dirigia à esteira das bagagens quando fui
abalroado por um desconhecido. Nossas bolsas e sacolas de mão se esparramaram
no chão. Trocamos as desculpas protocolares, em civilizado acordo com a
impessoalidade de um saguão de aeroporto, e nos desembaraçamos o mais rápido
que pudemos um do outro.
―
Caramba, você estava distraído checando o celular!
― Foi mal. Estas
pastas caíram da sua... não?
Sentia-me um
tanto tresnoitado pela viagem noturna, mas tudo corria bem, tirando, talvez, a
leve sensação de náusea começada ainda no vôo. Havia dormido o sono torturado
das viagens aéreas, despertei espavorido e já meio virado com o toque da
campainha daqueles avisos de bordo. Sonhava com o bairro da infância, na
verdade, com os cães de um vizinho pancada: três tristes cães da raça boxer,
ele os criava no quintal forrado de cerâmica e lajota da frente da casa; uma
alta grade de ferro pintada de verde, toda furadinha, permitia acompanhar a vida
feroz daqueles machos que viviam se atracando em brigas feias. Como costuma
acontecer nos sonhos, as aparências eram instáveis, os focinhos dos cachorros
esticavam e encolhiam num jogo de anamorfoses que, ora definiam as feições
achatadas dos boxers, ora se afilavam feito focinhos de porco, compondo o
aspecto típico dos bull terriers.
O curioso é
que agora eram as paredes a executar o bailado do pesadelo, tanto se fechavam
sobre mim, como se alargavam numa extensão demencial, enquanto o chão ondulava
no mesmo diapasão inesperado de concreto movente. Um violento enjôo me atirou numa
cadeira de metal, já não podia observar neutro o desenrolar dos fatos: o mal
estar turvava-me a vista e a consciência, a cabeça e o estômago giravam,
orbitando um ao outro furiosamente. Tudo girava.
Ondas de calor
me percorriam, no entanto, sentia frio, um suor frio cheirando a cão assustado
colava minha roupa ao corpo. Com a curta capacidade de planejamento restante,
antevi a necessidade de atravessar os metros que separavam meu assento do
banheiro masculino: nas entranhas convulsionadas uma tsunami se formava
ameaçando eclodir a qualquer momento. Temia que a vertigem me derrubasse a meio
do caminho, temia o escândalo público de uma queda retumbante no salão de
desembarque entre pessoas estranhas.
― Está
passando mal, moço?
― Hmm,
obrigado, não se preocupe, vai passar. Costumo ter essas coisas em viagem... Estou
bem.
A senhora
idosa, muito senhorinha na sua combinação de vestido e cardigã de malha leve,
devia estar me julgando pela cara. Não desviava o olhar do meu rosto. Invejei seu
autodomínio e o colar de pérolas que arrematava sua vestimenta correta, mas,
por alguma obscura teimosia, recusei a ajuda que o juízo mais chão recomendaria
aceitar. Esperei que fosse embora, ainda a acompanhei se afastando, girava a
cabeça para trás na minha direção, incerta de me abandonar à própria sorte. Fui
aos tropicões para o toalete, apoiado nos frios lambris metálicos das paredes,
rezando para que a pororoca das tripas me poupasse de constrangimentos antes de
chegar ao vaso.
No banheiro,
felizmente deserto, tive uma pane geral: vômitos, disenteria, e mais suadeira em bicas. Joguei a
camisa e as cuecas no lixo, na mochila encontrei uma salvadora camiseta. Só
retomei o prumo depois de beber e me lavar na água da pia, ajeitando o visual
no espelho imenso do jeito que dava. Tudo estava mais claro, mas o mal estar
ainda era tremendo. Voltei ao momento anterior à tontura, no burburinho em
torno da esteira das bagagens enxerguei a boa samaritana, acenei à distância, entre
agradecido e desejoso de reassegurá-la da minha integridade.
Só então me
dei conta de um problema, um grande problema: não lembrava qual era a minha
bagagem, pior ainda, não sabia nem quem eu era. Um nome ou lugar, uma
profissão, uma família, nada me vinha sobre
mim mesmo. Pensei que, quanto ao nome haveria jeito, lembrava de ter
guardado a carteira no bolso interno da jaqueta. Pânico: a carteira não estava
lá, revirei todos os bolsos e compartimentos da mochila, refiz o trajeto até ao
banheiro. Nada. Mas como? Onde teria...?
― Puta merda!
O cara do encontrão, ele levou minha carteira!
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