quarta-feira, 10 de setembro de 2014

a técnica perdida de achar coisas que não existem (1)




            Há uma metade do nosso corpo que nunca se adestra e coabita em nós como passageira clandestina de um lotação idem ― em geral, é o hemisfério canhoto a permanecer estabanado e indispensável pela existência a fora. (Embora isto não se aplique perfeitamente aos chamados sinistros, ou os que, como eu, alternam as lateralidades de perna, pé, mão e orientação política). Como num espelho de circo onde nossa imagem se confunde, derrubamos a chave, desaprendemos o nó, mudamos de caligrafia, erramos o salto parecendo grogues. Assim, dissimétricos, fomos nos construindo e sendo construídos: a atitude de resguardo à integridade, um certo atabalhoamento destruidor do ambiente, a auto-percepção desproporcionada da motricidade fina. Nosso lado canhestro move-se como um astronauta na lua, saltando bêbado de leveza, derrubando alegremente o que encontra no caminho, eternamente indeciso entre bagunçar e servir.
            Isto me ocorria difusamente naquele exato instante em que ajeitava a alça da mochila sobre o ombro esquerdo. Tinha acabado de sair do avião, atravessei o finger marcando passo no meio da multidão de passageiros e me dirigia à esteira das bagagens quando fui abalroado por um desconhecido. Nossas bolsas e sacolas de mão se esparramaram no chão. Trocamos as desculpas protocolares, em civilizado acordo com a impessoalidade de um saguão de aeroporto, e nos desembaraçamos o mais rápido que pudemos um do outro.
            ― Caramba, você estava distraído checando o celular!
― Foi mal. Estas pastas caíram da sua... não?
Sentia-me um tanto tresnoitado pela viagem noturna, mas tudo corria bem, tirando, talvez, a leve sensação de náusea começada ainda no vôo. Havia dormido o sono torturado das viagens aéreas, despertei espavorido e já meio virado com o toque da campainha daqueles avisos de bordo. Sonhava com o bairro da infância, na verdade, com os cães de um vizinho pancada: três tristes cães da raça boxer, ele os criava no quintal forrado de cerâmica e lajota da frente da casa; uma alta grade de ferro pintada de verde, toda furadinha, permitia acompanhar a vida feroz daqueles machos que viviam se atracando em brigas feias. Como costuma acontecer nos sonhos, as aparências eram instáveis, os focinhos dos cachorros esticavam e encolhiam num jogo de anamorfoses que, ora definiam as feições achatadas dos boxers, ora se afilavam feito focinhos de porco, compondo o aspecto típico dos bull terriers.
O curioso é que agora eram as paredes a executar o bailado do pesadelo, tanto se fechavam sobre mim, como se alargavam numa extensão demencial, enquanto o chão ondulava no mesmo diapasão inesperado de concreto movente. Um violento enjôo me atirou numa cadeira de metal, já não podia observar neutro o desenrolar dos fatos: o mal estar turvava-me a vista e a consciência, a cabeça e o estômago giravam, orbitando um ao outro furiosamente. Tudo girava.
Ondas de calor me percorriam, no entanto, sentia frio, um suor frio cheirando a cão assustado colava minha roupa ao corpo. Com a curta capacidade de planejamento restante, antevi a necessidade de atravessar os metros que separavam meu assento do banheiro masculino: nas entranhas convulsionadas uma tsunami se formava ameaçando eclodir a qualquer momento. Temia que a vertigem me derrubasse a meio do caminho, temia o escândalo público de uma queda retumbante no salão de desembarque entre pessoas estranhas.
― Está passando mal, moço?
― Hmm, obrigado, não se preocupe, vai passar. Costumo ter essas coisas em viagem... Estou bem.
A senhora idosa, muito senhorinha na sua combinação de vestido e cardigã de malha leve, devia estar me julgando pela cara. Não desviava o olhar do meu rosto. Invejei seu autodomínio e o colar de pérolas que arrematava sua vestimenta correta, mas, por alguma obscura teimosia, recusei a ajuda que o juízo mais chão recomendaria aceitar. Esperei que fosse embora, ainda a acompanhei se afastando, girava a cabeça para trás na minha direção, incerta de me abandonar à própria sorte. Fui aos tropicões para o toalete, apoiado nos frios lambris metálicos das paredes, rezando para que a pororoca das tripas me poupasse de constrangimentos antes de chegar ao vaso.
No banheiro, felizmente deserto, tive uma pane geral: vômitos, disenteria, e mais suadeira em bicas. Joguei a camisa e as cuecas no lixo, na mochila encontrei uma salvadora camiseta. Só retomei o prumo depois de beber e me lavar na água da pia, ajeitando o visual no espelho imenso do jeito que dava. Tudo estava mais claro, mas o mal estar ainda era tremendo. Voltei ao momento anterior à tontura, no burburinho em torno da esteira das bagagens enxerguei a boa samaritana, acenei à distância, entre agradecido e desejoso de reassegurá-la da minha integridade.
Só então me dei conta de um problema, um grande problema: não lembrava qual era a minha bagagem, pior ainda, não sabia nem quem eu era. Um nome ou lugar, uma profissão, uma família, nada me vinha sobre mim mesmo. Pensei que, quanto ao nome haveria jeito, lembrava de ter guardado a carteira no bolso interno da jaqueta. Pânico: a carteira não estava lá, revirei todos os bolsos e compartimentos da mochila, refiz o trajeto até ao banheiro. Nada. Mas como? Onde teria...?
― Puta merda! O cara do encontrão, ele levou minha carteira!


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