Tudo que é
sólido apodrece no ar, e tudo sempre pode piorar. O trombadinha desaparecera no
mundo. Para completar o roteiro do desastre, talvez também tivesse levado o
celular, fora que, durante a busca na sacola e nos bolsos não havia encontrado
nenhum tablet ou laptop. Depositei as esperanças cadentes em alguma etiqueta na
mala que pudesse devolver-me, senão uma identidade, ao menos um nome e algumas
roupas do meu número. Mas, qual mala era a minha, naquele insano arraial de
modelos e cores e formatos serpenteando na passarela de borracha?
Porra nenhuma a
fazer, a não ser esperar pela bagagem que sobrasse por último, ou seja,
resgatar-me por exclusão. Saí do bololô de gente para aguardar sentado; com
mais tempo e lucidez de espírito, comecei a investigar os dados imediatos da
minha mente em estado de choque. Percebi que lembrava alguns fragmentos de
fatos e cenas, mas não tinha acesso a nenhuma narrativa, verdadeira ou falsa,
para costurar um sentido a eles. Eu sabia
algumas coisas, por exemplo, ajudei o meu vizinho de vôo a reconectar seu
smartphone na rede depois da aterrissagem, mas ignorava como, por que e,
principalmente, quem sabia fazer isso
com tanta desenvoltura.
O mais sensato
talvez fosse procurar a polícia e comunicar o roubo, mas uma outra voz interior
dizia para esperar que o conteúdo da mala revelasse mais sobre mim. E se eu
fosse um ladrão, um assassino procurado, talvez até uma “mula” carregando
drogas clandestinamente? Ri sozinho desta última hipótese ― mesmo que tivesse
engolido papelotes revestidos de aço, estariam imprestáveis a esta hora. Passei
então a escrutinar a aparência geral e os sinais particulares: uso a barba
curta, cerrada, aproximadamente um metro e setenta e cinco de altura, cabelos e
olhos castanhos, nem gordo, nem magro, tatuagem na omoplata direita (um
ideograma), idade indefinível, possivelmente entre a quarta e a quinta década,
marca de vacina, cicatriz de cirurgia no joelho esquerdo, sem aliança, pulseira
ou gargantilha; relógio: Rolex falso.
Espontaneamente
prestava mais atenção à parcela feminina do meu entorno, porém, a julgar pela
diversidade de corpos e estilos que fixavam meu olhar, não devia ser dos mais
específicos nas preferências desse tipo. Era como se me houvessem instalado uma
divisória virtual no cérebro, ambas as metades permaneciam operacionais, apenas
não se comunicavam entre si. A lembrança de uma tabuleta escrita à mão: “Chapéus
para homens de palha”. Parecia uma cena antiga ― um trocadilho familiar, talvez
― embora descrevesse com acurácia a minha condição atual, eu era um homem oco,
um sujeito recheado de memórias sem sujeito. O homem de palha.
Lentamente, o
salão foi se esvaziando. Uma única mala preta, inútil e sozinha, continuava a
entrar e sair pelas cortinas do compartimento de bagagens. Peguei-a e saí para
a área de desembarque doméstico, onde uma nova pequena turba aguardava. Foi só
quando cruzei a porta automática que entendi o absurdo da situação. Familiares
se abraçavam, namorados, esposas, maridos, pais e filhos, amigos e amantes
matavam as saudades ― e havia pessoas com placas, aquelas placas com nomes
escritos. Várias possibilidades se abriam e fechavam, também os outros não me
reconheciam, chamavam, nem abraçavam.
Os portadores
de placa aparentavam querer que eu fosse o ser da placa, claro, mais para acabar
com suas esperas do que pra me tirar deste limbo. Algumas, com nomes bonitos,
eu fitava por mais tempo, como se, à força de olhar para aqueles nomes, pudesse
me tornar o ser correspondente. Vinícius Piedade, Élio Siridião, Rogério
Marques, Giulio Gabbana, Tito Lima, Mr. Vollard, Ambrose, Saulo Sakata...
Porém, os seres atrás das placas logo encontravam seus destinatários, ou
desviavam de mim o olhar entediado; todos menos um: o cara de bigode, óculos,
sorriso, pança e um cartaz onde havia apenas 3 letras: D S K.
― Dê-esse-cá?
― O quê?!
― Quê não, cá!
Seu vôo atrasou.
― Sim, claro,
atrasou um bocado, faltou teto pra pousar... ― esperava que ele me esclarecesse,
ou fizesse uma pergunta iluminadora, mas o camarada foi logo pegando as minhas
coisas e dirigindo o carrinho para o estacionamento. Não me chamava por nenhum
nome, portava-se em relação a mim com a deferência respeitosa e entrona que se
dispensa às celebridades. Será que eu sou alguém famoso?
― Desculpe,
esqueci de me apresentar, Viwelson.
― Prazer,
Vinelson, é... pra onde estamos indo?
― É Viwelson,
com “w” no segundo “v”. Vou te levar pro Marriott, padrão, né?
― Muito bom,
imagino. Tarde pra você estar trabalhando, não?
― Tô de boa.
Vão liberar a manhã pra mim, mas você, eles vêm pegar logo cedo. Oito da
matina. O roteiro já vai estar na mesa do seu quarto no hotel.
No carro em
alta velocidade pelas ruas de uma cidade qualquer à noite, eu me perguntava se
não estaria roubando o destino do verdadeiro DSK, que neste momento no
aeroporto procurava desesperado a plaquinha que assaltei. Não estaria furtando
seu passado, sua personalidade, raptando-lhe a posição social e os sonhos, usurpando
sua profissão? Teria eu despojado um legítimo cidadão de sua mulher e filhos,
sua chácara no campo, seus cães de raça, arrebatado uma vida inteira num só
golpe? Imbuído desse espírito pirata, comecei a me debruçar sobre a conversa do
Viwelson, ele me consultava como se eu fosse uma espécie de autoridade em
relacionamentos.
― Então, né,
eu e essa mina temos uma relação exclusivamente física, tipo eu te uso e você
me usa, saca?, mas aí vem o problema: me amarrei nela, à vera.
― Aí é que a
porca torce o rabicó ― parecia-me para lá de surpreendente que aquele cara de bigode,
óculos, sorriso, pança, e que ainda há pouco segurava o cartaz do D S K,
tivesse relações “puramente físicas” com alguém, e isso o incomodasse ― Esses
lances foram feitos pra ser simples, leves... e sem love.
― É, eu achei
que agüentava, deu não. Reparei que ela só me procura entre um relacionamento
sério e outro, nunca me dá a camisa de titular. Acho que, no amor, pra mim não
tem jogo amistoso, é tudo final de Copa do Mundo.
― Pois então,
a gente acha muita coisa que não é, sexo é fodinha, meu amigo, amor que é fodão
― nem podia crer na facilidade com que debitava tais enormidades, devia ter
feito isso a vida toda.
― Mas, e aí,
que é que eu faço?
― Vai por mim,
você entrou pela porta errada na vida dessa mulher, às vezes o cara consegue
sair e achar a porta certa, às vezes não.
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