No quarto do
hotel luxuoso ― de estilo moderno, porém retrô ―, nem todas as notícias a me
aguardar eram boas. Como prometido, as instruções detalhadas do que deveria
fazer no dia seguinte lá estavam, dentro de um envelope com as iniciais DSK.
Quem diabos é essa pessoa, ou seria uma empresa? O “d” e o “s” ainda poderiam
encaixar em mim, via-me tranquilamente como Daniel Santos, Douglas Silva, ou
até Diego Souza, mas o K fazia pensar num sobrenome estrangeiro. E eu tinha
cara de tudo, menos de japa ou gringo. O conteúdo da mala preta foi outro balde
de água gelada: roupas de mulher.
Figura, corpo,
presença, são designações muito elaboradas, noções situadas na região dos
meios; o mesmo já não se pode dizer da existência de carne e osso despida de
nome: algo nela ainda não penetrou até às fontes físicas da vida, permanecendo
ao largo do organismo inconsciente e generalizável onde se abriga a idéia. Eu
estava ali completamente só, procurando religar os fios de algum propósito aos
nervos e tendões de um corpo, de uma biografia, quando decidi que não seria o Ricardo-Coração-de-Leão,
mas o Ricardo-Coração-dos-Outros ― passaria a viver consoante o que esperassem
de mim, e não mais me conformaria à ilusão auto-imposta de um self único, pessoal
e intransferível.
Pagando bem,
que mal que tem? Ia ser pago para atuar num filme comercial, uma propaganda de
um produto médico. Um ator era o que queriam que eu fosse? Eu seria um ator.
Sem problemas, contanto que me dessem hospedagem, roupas, traslados, mordomias,
grana no bolso, e, ao final, me pusessem de volta num avião. Pode-se viver
perfeitamente sem uma identidade fixa, estável, neste mundo de consistência
mercurial onde as perguntas já contêm as respostas. Por um desses redobramentos
de fora para dentro, tudo sempre pode ser outra coisa, mas é a superfície que
se torna essencial e profunda.
A van chegou
pontualmente à oito da manhã para me buscar. Fui levado pelas ruas de uma
cidade desconhecida para o galpão de uma produtora num bairro residencial e
bastante arborizado. Gravar um comercial de poucos segundos é uma atividade
extenuante que envolve uma equipe inimaginável de fotógrafos, editores,
diretores, produtores, técnicos, maquiadores e figurinistas, além dos atores. Há
todo tipo de especialistas num set de filmagens, inclusive os experts em coisa
nenhuma. Ficamos um dia inteiro repetindo cenas, acertando a luz, o som, as
falas, a marcação de cena, até chegar a uma peça audiovisual que seria
submetida à aprovação do cliente no dia seguinte.
Pelo que pude
acompanhar da montagem na edição final, o filmete ficou mais ou menos assim:
Cena 1 – Plano
aberto, externa. Tiozinho sentado na praia numa cadeira branca tomando uma água
de côco, aproxima-se uma gostosona, falsa loira, de biquíni cortininha fio
dental ao som de um samba partido alto. Ela deixa cair a canga e se agacha para
pegá-la arrebitando o bumbum bem na frente do macróbio, sem despertar nenhuma
reação nele. Um sujeito de agasalho azul escuro que corria na areia da praia,
chega pelo lado oposto da cadeira, por trás, e recomenda ao velhinho:
― Ô gente
fina, tome Anemokol rapaz!
Cena 2 – Enquadramento
médio, cena de estúdio, plano-seqüência único, um consultório médico bem clean,
na parede do fundo de divisórias brancas um crucifixo de ferro batido, onde no
lugar do Cristo vê-se o Homem Vitruviano. O médico, já de certa idade,
respeitavelmente vestido com um jaleco de manga curta, óculos drummondianos,
bigode fino e estetoscópio em volta o pescoço, caminha da direita para a
esquerda, e se senta na mesa de trabalho segurando uma caixa do produto virada
para a tela.
― A saúde, a
energia, a vitalidade, e o apetite, você consegue com...? Anemokol!
Packshot 1 –
caixas empilhadas do produto, entra um lettering horizontal com o nome do
produto, seguido de uma faixa diagonal que repete a fala do locutor:
― Anemokol, à
venda nas farmácias e drogarias.
(Volta para a
cena inicial) – Contraplano da cena 1, o velhinho se levanta, animado só com a
dica, e corre pra xavecar a moça que se afastava na praia pela esquerda. À
direita da tela o corredor se afasta.
Cena 3 –
Edição rápida de várias externas com entrevistas de populares dando opinião
sobre o remédio (no táxi, no botequim, no balcão da farmácia, na feira, um anão
fala com a boca cheia de frango, etc.).
Packshot 2 -
caixas empilhadas do produto, entra um lettering horizontal com o nome do
produto, seguido de uma faixa diagonal com a fala do locutor:
― Anemokol, à
venda nas farmácias e drogarias.
Cena 4 –
Quarto de hotel, close no homem de chapéu e terno pretos (sou eu), óculos
escuros, cinto fivelão de vaqueiro e botas idem de couro; ele termina de se
vestir, travelling pelo quarto até uma mulher inteiramente nua, coberta apenas
no púbis e mamilos por flocos de espuma, que emerge de uma jacuzzi com uma
toalha enrolada na cabeça. Música sertaneja.
― Eu sou o
machão brasileiro: invejado pelos homens, e querido, amado, pelas mulheres.
Sabe por quê? Porque eu tomo Anemokol, A-ne-mo-kol. Com Anemokol eu tenho
saúde, vitalidade... e muito apetite! È isso aí, Anemokol, vai por mim.
Já sem a
toalha na cabeça, a morena escultural soltou os longos cabelos negros, vem por
trás e me abraça, carinhosa e submissa. Eu, inteiramente vestido, ela, nua.
Packshot final
- caixas empilhadas do produto, entra um lettering horizontal com o nome do
produto, seguido de uma faixa diagonal com a fala do locutor, que desta vez
acrescenta uma frase:
― Anemokol, à
venda nas farmácias e drogarias. Anemokol, o estimulante do século!
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