sábado, 27 de setembro de 2014

a técnica perdida de achar coisas que não existem (4)




Dali em diante, eu nunca mais fui a mesma pessoa. Literalmente. A coisa se tornou um mecanismo, uma engrenagem ao mesmo tempo repetitiva e surpreendente, na qual só me cabia embarcar no avião, descer noutra cidade qualquer, assumir a identidade randômica de uma plaquinha qualquer, e continuar seguindo sempre em frente, na direção do desperdício, das despedidas e dos recomeços. Tornei-me um exímio escolhedor de malas na esteira ― os pertences alheios também são tediosos e imprevisíveis ―, numa delas encontrei certa vez uma vela de barco. Nunca se sabe quando essas coisas podem ser úteis. Os lugares mudavam, mas o tempo permanecia o mesmo: um presente opaco, liso, incessante e fixo como os dias e noites sem fim dos pólos. Nunca mais viajei de classe econômica.
Ao custo de perder a memória, descobri finalmente não quem era, mas o que eu era. Eu sou um VIP, alguém muito importante. Pode-se nascer VIP, ou virar um, ou até deixar de o ser, mas o fato é que, enquanto for VIP, você passa para aquele grupo de pessoas diferentes das outras. Neste mundo cada vez mais rápido e sem fronteiras, onde todos vão ficando parecidos com todos, esta é a divisão fundamental, a porta fechada à multidão. A maioria dos indivíduos parece muito ansiosa em se adequar aos outros, vive a única vida que acredita possível, achando possível que ela seja realmente única. Já eu, sou todo mundo e ninguém. Num dia sou o empresário do ramo de cosméticos falando das perspectivas do setor, noutro, ministro workshops sobre técnicas xamânicas, ou coordeno cursos intensivos de leadership training, ou ainda emocionados sermões em igrejas gospel.
Minhas performances são gravadas, transmitidas, comentadas, compartilhadas on line, assistidas em muitas línguas, mesmo assim, nunca falham em causar uma comoção estranha quando as assisto. Há uma distância irônica, escarninha, entre a imagem perfeitamente sincrônica do vídeo e o sujeito telescopado que sinto ser na maior parte do tempo. Neste momento, acesso na tela do meu relógio o resumo da fala de um candidato a cargo político (que sou eu), discursando para uma seleta platéia de formadores de opinião. Como consigo ser tão convincente, dar a impressão de ter feito isso desde criancinha?
― Com tantas mudanças em curso, as instituições políticas se encontram ultrapassadas, carcomidas por práticas clientelistas, nepotismo, populismo e outras formas de patrimonialismo e perpetuação no poder a qualquer custo. Sob o pretexto de buscar condições estáveis para a governabilidade e a gestão da máquina pública, desde a redemocratização, o presidencialismo de coalizão tem se caracterizado por uma lógica viciosa de acordos de bastidores e distribuição de cargos e vantagens. Tornou-se corriqueiro o loteamento do Estado em troca de apoio parlamentar e tempo de propaganda eleitoral. O dinheiro do contribuinte é, assim, desperdiçado em políticas públicas inconclusas, por negligência ou por falta de planejamento, de integração e de visão de longo prazo. A transparência dá lugar à cultura da obscuridade e da corrupção. A democracia brasileira é de baixa qualidade porque pouco aberta à participação e marcada pelo desapego dos ocupantes de cargos públicos por práticas de accountability e transparência. Não bastasse isso, a legislação eleitoral opera a favor da concentração do poder, o debate é delimitado por estreitas orientações de marketing, e o sistema político seqüestrado pela lógica do mercado: só tem valor o que tem preço.
Nos períodos de espera em lounges de hotel e aeroportos venho me dedicando a registrar as coisas mais importantes que acontecem comigo, embora seja acossado por sérias dúvidas da utilidade disto. Para quem chegou até aqui, no entanto, farei uma revelação: os VIPs vivem entre performances públicas e festas privadas animadíssimas. Os antigos romanos as chamariam de orgias. Pois foi numa dessas festas fechadas, na modesta mansão do bispo Aristeu, quando ele comemorou a marca dos mil Semeadores, os franqueados da sua igreja capazes de desembolsar um milhão para abrir filiais próprias, que conheci aquela moça. Negra, longilínea, falsa magra, uma mulher de modos e proporções monumentais.
Ela achou uma boa idéia acompanhar-me ao quarto do hotel.


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