sábado, 16 de outubro de 2010

preciso aprender a desistir (dos meus vícios)

devo confessar que já cometi
poemas


só que poesia é
fogo


poesia escapa sempre
escapa


fumaça de incêndio
(que não há)


na verdadeira poesia não há verdade
só poesia


a verdade é que na vida estamos sós
e a poesia


na vida a poesia é tudo
ou nada


e no entanto a vida pede uma poesia
que falta



mas à poesia não falta
nada

sábado, 9 de outubro de 2010

A Lenda da Maria Sangrenta


Naquela altura Anápolis mal chegaria aos trinta mil habitantes, mas tinha aeroporto, ou melhor, havia lá uma pista asfaltada onde pousava um bimotor por semana. O Presidente ia para a Amazônia com escala em Goiânia, o mau tempo forçou o pouso na cidade, onde, cem anos antes, Da. Ana das Dores perdera uma mula com a imagem de Santana. Da fazenda das Antas fez-se a cidade das Anas, como ficou cristãmente batizada.

A excitação foi geral, o Presidente fez comício, botou falação comprida e ali foi que assinou a declaração em que dizia ao povo que a capital seria transferida para a região central do país. Lindomar gostou logo daquele homem fino de rosto e de maneiras, que magnetizava a todos falando de um país grande e próspero que viria; o sobrenome do homem é que lhe não entrava na cabeça: ouvia “cu-de-chefe”, mas isso não era nome de gente.

O servente de pedreiro Lindomar não pensou duas vezes, assim que os empreitas começaram a recrutar, ele se mandou com mulher e três filhos para construir Brasília. Em novembro de 1956 ele estava lá quando começaram a esburacar as fundações do Brasília Palace Hotel e do Palácio da Alvorada. Nos próximos três anos e meio de insanidade épica, ele ajudaria a erguer aquelas caixas de vidro, mármore e concreto armado com seixos de quartzito.

Antes disso, porém, ele liderou uma revolta dos candangos no canteiro de obras do palácio; quebraram barracões da empreiteira e até derrubaram o “Catetinho”, galpão rústico de jacarandá e peroba do campo onde Juscelino se hospedava nas visitas à futura sede do Poder Executivo. A peãozada recusou-se a comer a carne bichada do rango. Os patrões responderam estralando o reio: mandaram dar uma coça nos líderes da rebelião, vitimando o amigo Paraibinha. Lindomar passou a freqüentar a casa da viúva.

Construir a cidade a partir do nada, no meio daquele cerrado seco e calorento, foi um desafio ao gênio da raça; o Brasil mostrava ao mundo um estilo próprio e único, amálgama do engenho e da arte de um povo voltado para a modernidade. As superquadras emolduradas por largas avenidas desembocando em rotatórias, a esplanada dos ministérios com a barragem do Paranoá ao fundo, a arquitetura de colossais vãos e curvas, os pilares de extrema leveza, os brises de fibro-concreto, os granitos, o elemento vazado dos combogós, tudo lhe dizia que virara um gigante. Vieram mais três filhos.

Como na vida ninguém passa sem aperreio, a viúva do Paraibinha, agora convertida em amante, emprenhou. Arrelia danada. O parto foi uma agonia, a criança, um macho, nasceu bem, mas a mãe quase morreu de uma hemorragia incontrolável. Uma vizinha amamentou o bebê enquanto a mãe se recuperava; Lindomar ia todos os dias visitá-los em Taguatinga. Até que Feliciana, a esposa traída, apareceu na porta do barraco, louca, virada no Coiso, ameaçando o marido, a amásia e a criança. Um pampeiro. Na saída, ainda chutou o cachorrinho cotó da outra.

Pressionado pela patroa, Lindomar mijou pra trás, negou-se a registrar a criança, ofereceu dinheiro e passagem para que a viúva deixasse o Distrito Federal. Ela recusou. Batizou o menino com o nome de Omar, homenagem ao pai fujão e lembrança perene de que, para ela e o filho, a vida nada tinha de linda. Mudou-se para o Rio de Janeiro, foi morar na Rocinha, no puxadinho do barraco de um irmão. Ele se tornou um pai exemplar para os filhos legítimos, conseguiu formar advogada a mais nova, Guiomar, que alcançaria altos cargos na Secretaria de Segurança, na Eletronorte e no ministério de Minas e Energia.

A ascensão da caçula tirou o pé de todos da lama, após trinta anos de sacrifícios a família deixou a cidade-satélite do Guará. Lindomar nunca mais soube notícias do filho, embora Omar freqüentasse a mídia carioca e nacional, traficante conhecido pela alcunha de Mazinho Biluca. Mazinho, implacável nos “negócios”, era um bom filho: instalou a mãe na cobertura de um prédio na favela, botou deque e piscina na varanda, ofurô, TV tela plana, piso de porcelanato e acabamento com pintura texturizada. Namorava Maria da Penha, a popozuda do pedaço. Vidão.

Biluca tinha o costume de pular a cerca, bandido quase nunca é homem de uma mulher só. Acontece que ele passou do ponto e catou a meia-irmã falsa loira da Maria, que, inconformada, resolveu se vingar do casalzinho. Maria era popozuda e linda, mas louca; entregou a fita para os traficantes rivais, molezinha, eles se encontravam fora da favela num apê de cinema que o safado comprara na Barra da Tijuca. Fez questão de acompanhar toda a operação: a tocaia, o julgamento dos chefões no alto do morro, o esculacho dos matadores e a execução de ambos com requintes de crueldade.

Os assassinos deixaram os pertences do Mazinho com Maria: um molho de chaves, o celular, um patuá e a automática. Desvairada, ela saiu a esmo, vagando horas a fio pelos dédalos da favela; chegando ao asfalto, foi tomada por uma firme resolução: queria conhecer o ninho de amor em que a traição se consumara. Pegou o lotação para a Barra. O apartamento era de um luxo delirante, os quadros rodavam à volta dela, as cortinas, os sofás, as luminárias; sufocou com todo aquele chiquê de uma vida estofada que não lhe tinha cabido. Deixou-se cair na cama redonda do quarto, chorava de soluçar.

O espelho, que tomava todo o teto do quarto, refletia cenas tórridas de sexo dos amantes mortos em alternância confusa com a imagem de uma mulher abandonada; como que acompanhava à distância seus próprios atos. Alguns dos livros mais antigos sobre a construção de Brasília trazem fotos invertidas, já que os primeiros registros foram feitos com filmes próprios para slide; da mesma forma, Maria enxergava aquela mulher lá no alto apanhar na bolsa uma arma, ficar de pé sobre a cama e colocar o cano na boca antes de estourar os miolos. A última coisa que viu foi o sangue salpicando o espelho.

O apartamento passou sete anos fechado. Nas noites de lua nova, corriam histórias de vizinhos sobre horríveis e inarticulados gritos vindos do quarto da Maria Sangrenta. Até que uma família se mudou para lá, um lobista de Brasília com a segunda mulher e o filho pequeno. A rádio-pião do condomínio logo noticiava que ele tinha sido pivô de um escândalo recente de intermediações fraudulentas na Controladoria Geral da União. Mudados às pressas, os novos condôminos se instalaram no novo lar sem reformas minuciosas, reservando o quarto do espelho manchado para acomodar o excedente do depósito. Proibiram o menino de freqüentar o cômodo.

Mas criança, já viu, proibiu, tentou. Lindomarzinho, xará do avô, buscava um boneco encaixotado do Ben Dez na ala proibida de seu novo castelo; os pais tinham ido buscar as compras de supermercado na garagem, era um sábado de folga da empregada. Deparou-se com o espelho que emanava uma luz baça, curioso, subiu numa pilha de caixas. Diz uma versão horripilante que o menino foi pego pela alma atormentada da Maria Sangrenta, que o escangotou até lhe quebrar o pescoço. O certo é que a partir daqui começa um mistério que o inquérito policial nunca conseguiu resolver: nas roupas da vítima foi encontrado o sangue de uma mulher.

Lindomar soube da notícia em Brasília, o antigo pedreiro não suportou o acúmulo deste golpe à dolorosa perda da indicação ao Ministério das Cidades pela filha Guiomar. Morreu de enfarte numa idade avançada que ele mesmo desconhecia; a última coisa que ouviu foi o neto de sete anos chamando por ele enquanto caía no abismo.

sábado, 2 de outubro de 2010

A Mansão dos Meninos Imaginários

― Secretário... sente-se por favor, fizemos uma edição dos vídeos da menina, hãm... são os trechos mais... polêmicos, os mais sensíveis, por assim dizer, para um dos carros-chefe do governador: a reformulação da Secretaria do Menor...

― Caralho Proença, o governador me comendo o rabo, essa bosta de vídeo bombando no twitter, a reeleição em primeiro turno perigando, como é que você acha que o homem tá, hem? Quem pôs banda larga nessa porra de abrigo?

― Foi uma doação dos rotarianos do bairro... as crianças é que criaram a conta, bem... já tiramos tudo do ar, o problema são os virais rolando nas redes sociais...

― Rede social de cu é rola, Proença!... Um puta estrago desses na reta final da campanha! Vamos ter que achar nessa merda daí uma saída, mandar para o marqueteiro da campanha aprovar... O governador tem coletiva de imprensa logo mais à noite, que cacete!

― Bem, vamos assistir neste aparelho... ah, não se preocupe, a sala passou por varredura...



“A Daiane dá saltos bem altos, eu sou a Daiane dançando, levanto a perna, requebro, dou pulos e cambotas, fazendo piruetas pelo ar e o mundo todo aplaudindo de olhos arregalados; ela é a menina mais bonita do mundo porque ela não é só uma campeã olímpica, porque ela é também Miss Universo, a mais linda de todo sempre; então, quando ela já ganhou a medalha de ouro mais o prêmio de um milhão de dólares, ela vai dar o maior de todos os saltos mortais de todos os tempos, a platéia fica com medo do que vai acontecer, ran-tan-tan-tan, são os tambores tocando no maior estádio do mundo, que nem no circo, e a Daiane voa muito alto, tão alto que ninguém sabe como ela vai descer, e então vem um menino muito bonito, igual aquele do “Esqueceram de Mim”, e pega ela voando e leva ela no trapézio para junto do pai e da mãe dele, que são também os donos do circo, e eu vou junto com eles viajando pelo mundo afora, deixando as pessoas muito admiradas na Europa e em Nova Iorque. Nós somos muito felizes e famosos em Hollywood também.”

“Agora, voltei a me chamar Rayane, que é meu nome de verdade; é que antes mudaram meu nome para Maria Eugênia, um nome feio e de gente velha, tenho 9 anos e estou no segundo ano do fundamental, não gostei que mudaram meu nome, também não achei bom quando me levaram, prefiro morar aqui: já conheço os monitores, a tia Neide da cozinha, as coordenadoras, o diretor; prefiro morar no abrigo, todos os meus amigos são daqui, do Abrigo Geneton Ilaci. A gente vem pra cá quando deixa de ser criancinha-bebê, daí ninguém mais quer adotar nós e falam pra gente que agora nossa família é o abrigo, só vamos sair quando ficar de maior; outra coisa que falam é que quem faz coisa que não deve vai parar na Fundação Casa, a FEBEM, lá é muito podreira, só tem meninos bem ruins que apanham muito dos monitores. A gente chama mesmo é de Fundação Casa do Capeta. Eu estou no Geneton porque meus pais morreram queimados no barraco onde a gente morava; o Elias, um menino mais velho, morava lá também na favela do Jaguaré e disse que os ricos quando vão fazer os condomínios deles mandam queimar as casas dos pobres. O Elias perdeu a mãe nesse incêndio, do pai ele nunca soube.”

“Tem uns tio bonzinho que sempre aparecem no Dia das Crianças e no Natal, eles dá presente pra nós; foram eles que botaram computador e agora tem Cartoon e Discovery Kids na nossa TV, mas os monitores só deixam a gente ver 2 horas por dia, eles são muito chatos, eles tá sempre dizendo: ‘tem coisa que pode e tem coisa que não pode’. Não pode é o que eles mais falam; criança não pode quase nada, mas eles fica assistindo filme a noite toda, que eu sei. O que eu mais gosto de ver no Cartoon é a Mansão Foster para Amigos Imaginários, a mansão é que nem o Geneton, o senhor Coelho e a Madame Foster recolhem os amigos imaginários quando as crianças abandonam eles ― nunca que eu vou abandonar a Daiane, ela é a minha melhor amiga. Lá na escola, as outra menina me zoa, elas não brinca comigo no recreio, nem convida para as festa delas; na escola tem os ‘populares’ e o resto, quem não é popular chamam de ‘os FEBEM’, mesmo que não seja do abrigo. Só não dizem na cara porque têm medo de apanhar, têm medo de nós, como se a gente fosse tudo bandido; as meninas da minha classe só me dão tchauzinho na saída, quando os pais buscam elas e eu estou entrando na perua do Geneton. Fazem só pra chatear, como dizendo: ‘agora eu vou pra minha casa, e você?’”

“Alguns meninos e meninas daqui tem mãe na prisão, todos sonham que ela vai voltar e tirar eles daqui; a mulher que me levou, Dona Mércia, disse que ia me levar para morar num apartamento grande, me chamava de filha, e que ia ter um quarto só pra mim e até ia ganhar um Gameboy; acreditei nela, todo mundo dizia que era uma chance na vida. Mas não foi nada do que ela falou, ela e só reclamava comigo: que não como direito, que não arrumo o quarto, até me levaram numa pissicóloga para ela tirar a Daiane de mim. Essa bruxa tava sempre gritando, me chamando de louca, dizia que eu não podia ficar falando sozinha, que fazia xixi na cama toda hora ― isso é vida? Daí que eu penso na história de ter uma chance, eu já tive uma chance na vida: ninguém sabe como não morri queimada junto com meus pais, se eu fosse a Daiane acho que eu tinha salvado eles; fico triste quando penso nisso, fico triste também porque aquela mulher mudou meu nome e botou o da mãe dela que tinha morrido. É ruim ser devolvida, parece que fui eu que aprontei e que não sirvo pra ninguém. Por isso que gosto tanto de ver a Daiane dos Santos na TV, ela é tão dez!, ela é uma campeã de verdade, admiro muito ela porque ela continua, dá aquele tuíste carpado mesmo sentindo dor.”

Os adultos só mandam, mandam em tudo, mandam nas coisa e nas palavra, por exemplo, quando a gente faz merda aqui no Geneton, primeiro os monitores dão bronca e depois vem o diretor e dá um castigo de verdade. Ser criança é difícil por causa dos adultos, ser criança demora muito; aprendi que primeiro a gente precisa saber quem manda nas coisas, para depois fingir que acredita no que dizem. Na escola nunca falam: ‘você está de castigo’, mas você está, fica fora da classe sem poder brincar, só esperando a aula acabar; você tá de castigo, mas eles dizem que não é bem assim. O problema de gente grande é que eles é só grande, não é melhor que nós, os pequeno, a gente vira grande quando esquece como é ser criança.”