domingo, 27 de fevereiro de 2011

anti-ode a Mario Benedetti

Não rias
ainda estás a tempo
de afastar e desistir de novo
rejeitar tuas sombras
desenterrar teus medos
acumular mais lastro
arregar do vôo.


Não rias
que a vida é isso
o medo da viagem
a fuga do sonho
desperdiçar o tempo
correr pelos escombros
e travar o jogo.


Não rias
enquanto cedes
ainda que o frio
queime
o medo morda
ainda
que o sol se esconda
e se cale o vento
já não há fogo
na tua alma falta vida
em teus sonhos.


Porque nem a vida é tua
nem teu o desejo
porque não quiseste
e agora também não quero
porque são o vinho e o amor
incertos
porque há feridas que não cura
o tempo.


Fechaste as portas
trancaste ferrolhos
protegido por muralhas
não vives a vida
recusas o repto.


Recuperar o riso?
Ensaiar um canto?
Baixar a guarda?
Estender as mãos?
Abrir as asas?
E tentar de novo
celebrar a vida retomando
a praça?


Não te rias
por favor foi só um momento
achei que podias não
ter cedido
ao frio que queima
ao medo que morde
ao sol que se põe
ao vento que se cala.


Não rias só porque
pensei haver fogo em tua alma
e vida em teus sonhos
porque cada dia recomeça
porque não há melhor hora
do que este momento
porque estás só
e ninguém te quer
ouvir.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Eu quero é dormir na praça!

30 anos dura a dita (dura)

18 dias leva o povo a derrubá-la

Pirâmides balançam, a Esfinge sorri

(os canalhas estupram)

chupa que é de uva Ben Ali, Mubarak, Kaddafi e tutti quanti!

1984

jornais, rádios, revistas e a TV plim-plim não davam

mas o país convulsionava, novos ventos sopravam

eu voltava da escola, engolia um mistão e corria para a Sé

meus pais, informados pela mídia chapa-branca, nem desconfiavam

eu não, ligado no Facebook/Twitter da época

me embriaguei por estar do lado "certo" da história

os comícios passaram a ser medidos pelo milhão

a praça era do povo como o céu do condor

na minha terra havia e há, palmeira, jasmim e sabiá

agora, revolução à vera, cá nunca houve nem há

e já que condor aqui não se dá, quem comeu foi urubu

e carcará

27 anos depois, olhando a praça Tahrir é que vi

com meus olhos de cego vi o que não estava lá

vi o que lá não tinha, mas tinha no Diretas-Já:

palanque armado, camisetinha, celebridades, políticalha e jabá

os gambé vazaram aprovando uma Anistia que lhes cobria o rabo

os bacanos se atracaram ao butim dizendo aos brados

é de vós que o poder vem, às urnas, macacada

mas voto não teve não, teve foi gambiarra e acordão

e, de lá pra cá, os gabirus do palanque do poder não saíram mais não

por isso é que eu quero voltar para a praça e berrar a todo pulmão

chega de Tiriricas, Capitão Nascimento para presidente!

Capita, o inimigo agora somos nós!

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Elas vêm, elas voam



As fadas ainda voam em cidades que eu desconheço.
 Me debruço no passado de costas para o futuro
  para ver que essa é uma viagem que torna o descobridor a vítima do seu próprio tempo.
"Quem vem lá sou eu..."
                           Respiro impulsivamente da mata cada pedaço do som que o vento me trás.
                                                           Jambo, acerola, umbuzeiro,
                                                           Ciriguela, graviola, jenipapo, cajueiro
                                                                              Cajá.
                                                                      Mangaba, cacau
                                                                          Jaca, sapoti
                                                                       Manga, maracuja
                                                                          Acaí, Araça
                                                               O som que cabe no meu suco.
                           A noite chega e as fadas com seus mantos escondem os pés em curtos movimentos. 



           fmaynart

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Eu, o lobo

Por que razão vem à noite?
Para poder cavar em paz e sem pressa
os barulhos da noite o escondem
Qual o motivo do buraco que cava?
O buraco não tem motivo
apenas a ausência necessária
para que ninguém se julgue ileso
Ele está dentro da casa
Como sei que está aqui
e não escondido no mato?
Eu que deixei entrar
É uma fera terrível
devorou toda uma família de anões
Por que sei que é um lobo?
Eu que o criei
desde a barriga da loba
Esperamos a polícia mas é ele
(o lobo) que gosta de polícia
Há uma arma
mas não há coragem para usá-la
Por que é que nunca soubemos
desse quarto no subsolo?
Ele foi lacrado para que
sobre os seus segredos pudéssemos viver
ao rés do chão
Como pode ter certeza
de que há crianças na casa?
Onde há crianças há o medo
dos lobos
Qual o motivo de os temermos tanto?
Um cão pode voltar
a ser lobo e vice versa
nós estamos condenados a ser uns
os lobos dos outros
Vi ou sonhei que vi
a mulher se aproxima do bebê que chora
pega-o no colo e retira do seu pé
um espinho em seguida cuida
do ferimento.
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desenho: "Nuna djá Nela" de Guga Alayon 2010

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

todas devem pra Leila

toda mulher é meio anarquista
lenda
sob hipocrisias medulares
a esbórnia matinal da vida



toda mulher é do mundo
abilolada
as mil estilhas cintilantes
das palavras e das bombas



toda mulher quer ser feliz
e
gostaria de andar nua
por dentro e por fora no meio
da rua



é preciso des-educar-se
senão as coisas ficam sepultadas
(dentro da gente)
ou saem na urina e no cocô



se a tua alma não fosse noite
eu gritaria do fundo dos teus cabelos-névoa
ou da tua boca, que é um berço,
onde navego pela paixão de mudar
o mundo

sexo feliz como as paixões serôdias

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

a obra do amor

A faculdade do conhecimento reconhece a dívida da memória para com a presença. Logo, o saber está longe de serena segurança.

O certo é que um amor é o amor em si mesmo, pois que cada mônada é um cosmo, feita de contingência e solidariedade e mistério.

No amor não há dúvidas, só a cegueira convicta daqueles que se abrem às promessas do abismo.

Viver as babilônicas possibilidades: o teatro, a liberdade, o eterno pacto com o desconhecido.

Não sei o nome da fera que me apareceu em sonho, não sei e não quero saber. Há coisas demais do “outro lado”.

Agora que esqueci, sinto a falta dela, para falar a verdade, sinto falta da ausência que ela me faz.

Imagino que sei o isto significa: só me cabe o amor que termina antes de começar, que é túrbido vazio, aposta. Amarei no mais que perfeito.

Às vezes um espelho num lugar inesperado, outras, uma superfície qualquer produz esse menos-que-segundo de irreconhecimento ― quem seria?

Amor, desamor, reciprocidade, desafinamentos eletivos, universo efêmero que dura o luto de um entretempo.

O que seria amar o amor, confiar, incauto, no seu poder ignorado?

Só por ele acedemos à real urgência do instante, e só desta forma o exílio adquire suficiência e revelação, já que não existe nome para esta força, não há força que a possa dizer ou negar, constranger ou provar.

Ansiamos retê-lo, mas então o amor não se mostra; gostaríamos de transformá-lo, mas ele é pura metamorfose; desejaríamos agradecer-lhe, mas ele é perfeita generosidade e aventura.


poemas não chegam a ser coisas mas duram mais do que elas

as poesias mais belas são escritas
numa língua estrangeira que mais ninguém
decifra não de todo nunca
definitivamente

as poesias mais belas têm sentimento
o fervor
da oração das crianças o escrúpulo
inquieto das lições de casa malfeitas

as poesias mais belas são verdadeiros pensamentos
que vêm tanto do coração do sexo do
eu-pele
como do cérebro

as poesias mais belas têm sangue ardente
de emoções e instintos correndo
por elas qual fogo de santelmo
na tempestade no heliotrópio

as poesias mais belas são descabeladas
bacanais amizades entre fêmeas
comunas redes sociais sinapses
porque poesia é jogo (infinito) desfile
de signos

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Revista Lowcultura #1

Para Download acesse: http://www.dasdoida.com.br/loja.htm

aguardamos colaboração para #2 da Revista.

tornar-se outro, ou a gênese do humano

autotélica
a experiência do vivido se fecha
sobre si mesma a duração
não encontra fim
mas acaba
sem justificar nada ou ninguém
(som & fúria & loucura & bebedeira & que não significam nada, etc., etc.)

posta no vazio a queimar
com sua luz própria
a obra
povoada de vidas circunstâncias pressões
e acaso
se perde sai do isolamento e inicia
uma fusão a frio entre
a arte e o ser

Fale comigo.
Você que me deixou só, mergulhado nas fornalhas,
os rios negros da Geena;
por que nunca fala o que está pensando?
Há conforto para você em seu silencioso céu
enquanto receio que as flores não amanheçam,
murchem
como os beijos que acabam?
Tive minha chuva de lágrimas;
foi noite escura, na certa,
foi a desolação deste lugar bravio.

concedo: viver é bem mais estranho
arriscado
estúpido
milagroso
e inútil do que a morte
angustio-me
― é inevitável
como os pedágios na autoestrada
as consultas do dermatologista e o controle
do colesterol

se não posso ser autista
realizo no entanto um esforço destro
essencialmente biográfico (e mutante) mas incapaz
de enfrentar o trânsito da metrópole
onde encontro com hora marcada o coração selvagem
da vida

se não posso evitar o sofrimento
ao menos aspiro criar o meu privado
equívoco
minha ilusão de inalienável idiotia
como fazem os heróis sem saber
como fazem os poetas por querer
como fazem todos na desmedida de suas
possibilidades