sábado, 29 de novembro de 2014

Cele... brisou (1)



            E então lá estava ele: rebolando na pista, uíscão na mão, indicadores apontados para o alto, chacoalhando ostensivamente a pulseira VIP, tirando selfie com o DJ, pagando de rei do camarote; estilo vacilante entre o coxinha-roupa-de-shopping e o bagaceira P.I.M.P. Sabe o tipo de sujeito que grita “Uhu, partiu balada”?
            Vergonha alheia total.
            Foi a primeira vez que me dei conta da existência daquele cara, o energúmeno passou a ser figurinha carimbada em todos os lugares onde eu andava. Saía do trabalho, lá estava o mala, descia do elevador, dava de cara com ele, no vagão do metrô, na sala de espera do analista, no estádio assistindo o show de rock, correndo no parque, bem atrás de mim na fila da lotérica, em todos os cantos acabava por encontrar aquele chiclete grudado no pé.
            Quem não ficaria noiado no meu lugar?
            Prestei queixa à polícia ― só consegui foi criar um mega enrosco. Pra começar, não era claro o local, uma vez que procurei a delegacia mais perto da minha casa e não a correspondente à ocorrência (que eram várias), depois, havia o problema muito mais fundamental de não haver crime algum. O pentelho não fazia nada, não me abordava, não ameaçava, nem sequer se dirigia a mim. Apenas não faltava, nunca.
            Até que achei um policial com saco pra perder meia hora comigo. Acompanhou-me a um bar nas imediações da delegacia, dez minutos, e pimba!, o feladaputa apareceu todo fagueiro no pedaço. Aceitou a prensa surpreso mas sem reclamar, apresentou documentos, foi revistado, tudo nos conformes. Um cretino acima de qualquer suspeita: não tinha capivara, registro cível e penal limpos.
            Nada a fazer, meti a viola no saco.
            ― Mas você não acha estranho um caboclo gastar tempo seguindo os passos do outro, assim, do nada?
― Amigo, na boa, a polícia foi até onde pode ir neste caso. Intuição minha, sossega que o louco é manso, no máximo um viado obcecado por você. Daqui a pouco ele desimpregna, vai azucrinar outro.
― E não pode obrigar esse freak a fazer um exame de sanidade mental? Isso não pode ser normal.
― Faz parte do direito de ir e vir. Se fôssemos obrigar todo cidadão a fazer uma coisa dessas, não saía ninguém de casa, moço.
Bom, as coisas estavam nesse pé quando topei com a figura na fila de embarque do vôo que me levaria para merecidas férias. Aquilo foi demais. Num relance, vi toda a estadia em Las Leñas com aquele papagaio de pirata colado em mim pra cima e pra baixo, a vista pretejou, depois tingiu-se de uma névoa vermelha, e foi aí que parti pra cima dele. Dei-lhe uns bons pares de chutes, pescoções e muquetas a esmo antes que três passageiros me contivessem derrubando-me no piso numa cena grotesca.
― Me solta, me solta! Vocês não sabem o que eu estou passando por causa desse panaca, me soltaaa!
Fuzuê completo no saguão lotado. Delegacia (de novo), depoimentos, acareação, etc., no fim do imbróglio, o agredido não quis registrar queixa-crime, queria tão somente embarcar na sua viagem e esquiar com os amigos! Não achei tão mal: não houve abertura de inquérito, podia transferir a viagem e adiar as reservas de hotel pra baixa temporada, e ainda ganhava uns dias pra pensar sem aquela sarna.
Era uma porra de um pesadelo.
Pago imposto, respeito as leis, pego no pesado, e, na hora de garantir o repouso do guerreiro, tudo que o Estado me oferece é o risco de ser indiciado por agressão. E ainda tenho que agradecer porque saiu barato pro meu lado. Foi quando rolou o insight: no fundo, como em tudo mais neste país, se eu queria um serviço bem feito ia ter de botar a mão no bolso. Contratei o detetive Jamil Biscaia, um investigador aposentado do Garra pra desenrolar essa fita.


sábado, 15 de novembro de 2014

Perivaldo e Cecivânia #4



Ajeitou os fones no ouvido, puxou as calças ― inutilmente ― para cima, e saiu à direita na Ipiranga só quebrando de levinho o skate na contramão dos carros. Pra desbaratinar a linha reta ia dando uns flips, backside, frontside, contornou na Praça da República saltando os buracos do asfalto com ollies cabulosos. Tudo à sua volta estava em movimento, os carrinhos de papelão, os homens-placa, as pombas, sacos plásticos voavam, as pessoas iam ou voltavam de algum lugar, desciam do ônibus, entravam na lotérica, paravam pra comprar amendoim torrado. Parecia que todos tinham seu lugar no mundo, caminhando para destinos conhecidos, protegidos por Deus e abrigados num lar. Menos ele, que não tinha feito nada errado, a não ser nascer.
Precisava parar, pensar, mas como, se estava com a sua mente até às tampas de pensamentos avulsos e o corpo atochado de adrenalina? Não podia dormir uma segunda noite no mesmo muquifo, isso era certo, qualquer ligação com a sua comunidade tinha de ser cortada. Muito zoião por aí. Precisava encontrar alguma coisa, alguém. Lembrou dos broders da Roosevelt, numa hora dessas devia ter vários deles por lá quebrando geral nos gaps, rampas, escadas e palcos da praça preferida dos skatistas de street. Não deu outra: molecada tava lá tocando o terror no concreto. Sentou num canto, ouvindo os versos da MC Luana.
Nasceu! Mais um fruto do acaso
E o mané que não quer nada,
O sobrenome é descaso
Uma gravidez indesejada, mesmo com a prevenção
Não importa sua crença ou religião
E imagina, de uma forma perigosa e clandestina
Como é que vai fazer para mudar a sua sina...
Pois é, como fazer pra mudar a sua sina? Tinha a impressão de que o tempo havia acelerado como em um filme, era louco pensar que nunca atentara para o tempo, a substância inquieta e fluida de que a vida é feita, essa coisa sempre outra, mutante, indecifrável. Peri atravessava um mistério a cada minuto, enigma não resolvido que logo escapava, substituído continuamente por outro quebra-cabeça mais novo e aterrorizante. Tinha caído na corrente de um rio sem fim, a história se repetia, é verdade, mas também se transmutava, cambiando microscopicamente, imperceptivelmente, até que o instante passava deixando a certeza de que nada seria como antes. Nascer é muito comprido.
― E aí moleque, tá aí de canto, mocosado, que é que tá pegando, Peri?
― Fala, Bugalu! Tô de boa, mano, só no varial...
― Então bro, cai dentro, bora lá fazer umas manobra. Ou vai ficar aí só de rosca?
― Ih, mano, tô piano hoje, mó caô, uma roubada federal. Escuta, tem a manha de me arrumar um canto pra mim dormir, só por hoje?
― Putcha vida, irmão, lá na goma nem rola. Minha irmã mudou pra casa com bebê, cunhado e o carai, eu mesmo tô dormindo no chão da sala. Sem chance.
― Pô cara, desculpa chegar assim de pé na porta, é que... meu perrengue é sinistro mesmo.
― Mas qual que foi? Tu comeu a mãe do guarda?
― Nem zoa, Bugalu, a resenha é mais cumprida que a Estrada do M’Boi Mirim, o caso é que emprestei a cabrita prum broder que ficou de conversa com gambé, e agora o gerente lá da minha quebrada tá achando que fui eu que cagüetei a firma.
― Caraca, véio, sujeira fodida! Esses cara do movimento não deixa frango engordar pra galo, já mata no ovo.
― Pois é, véio, nego me encomendou e não tenho como explicar que focinho de porco não é tomada.
― Seguinte Peri, esses pela-saco daí fizeram uma entera pra comprar uns bagulho de comer e refri. Tó aí mano, uma garça, contribuição nossa pra tu ir se virando por enquanto.
― Opa, já ajuda. Brigadão mesmo. Vou sair fora, valeu irmão.
― Peraí meu, onde cê tá indo criatura?
― Nem sei, só não quero ficar aqui batendo cara, eu que não vou dar mole pra kojak.
― Então Peri, em vez de ficar pasmando por aí, por que tu não cola lá na Vergueiro? Cê tem umas parada lá com o pessoal do break, que eu tô ligado.
― Somente! Hmm, daqui pra chegar lá é dois palito... Ei, Bugalu, mais uma coisa: tu nem me viu, firmeza?
― Nem precisava falar, vai pela sombra pé de chumbo ― o garoto deu um spin de 360 graus e acelerou na direção de um corrimão que ele desceu deslizando a prancha no aço escovado.


sábado, 8 de novembro de 2014

Perivaldo e Cecivânia #3



Ele sempre soube que era negro, neguinho, urubu, boneco de piche, tiziu, tição, chiclete de onça, sempre percebeu os olhares atentos dos seguranças, as perguntas dos porteiros, as inevitáveis entradas de serviço, a espera com a pizza atrás das grades de edifícios onde nunca poderia entrar. Sempre soube que era adotado e que dos seus pais não poderia esperar nada, todos os dezessete da sua vida tinham sido uma segunda chance. Não era para ele ter nascido, nascido, quase não sobreviveu, crescido, agora se via na obrigação de cair no mundo de uma hora para a outra. O que Peri nunca poderia saber é que também ele se tornaria um negro fujão como Zumbi, mais um.
Nunca mais esqueceu aquela noite: doze de agosto, o ano ele não lembra porque ainda era muito pivete. Ele assistia ao Supercine, o filme tinha Tom Hanks na comédia Será que ele é? No intervalo, uma mensagem em vídeo interrompe a programação. Um homem encapuzado usando colete à prova de balas diante de uma bandeira que dizia: “O PCC luta pela injustiça carcerária. Paz e justiça”. O homem é negro, ou quase, como quase todo mundo na sua quebrada, ele fala das prisões, os depósitos dos humanos sem direitos, explica que a guerra não é contra a população, os inimigos são o Estado e o seu braço armado, a polícia. Ele termina com uma frase encarando a tela: “A luta é nós e vocês”.
Paz, justiça e liberdade, era o lema deles, repetiam como um refrão de rap. Peri descobriu no espaço de uma noite que não terá os dois primeiros, que só lhe sobrou a correria pela sua liberdade. Escapou mocosado na mala do carro de uma voluntária da ONG que ensinava teatro, dança e capoeira na favela. Dormiu numa ocupação da Barão de Limeira no centro da cidade, e saiu no dia seguinte para procurar outro lugar para ficar. Um dia luminoso e pachorrento de domingo começava na metrópole que não se importava com ele, as pessoas iam e vinham pelas ruas despreocupadamente.
Tentou parar de raciocinar, tentou parar de pensar que estava tudo errado: os bandidos lutavam pela justiça, enquanto a justiça lutava pelos ricos. Vocês? Nós? De quem é a luta? Quem são os mocinhos? Quem são os bandidos? O que ele sabia é que, no final, sempre o poderoso esmaga o fraco. Deslizava no seu skate carregando a mochila nas costas, bonezão de pala cobrindo o rosto e a carteira com dez reais enterrada no bolso da calça larga. Não tinha a menor idéia do que deveria fazer a partir de agora. A porra tava toda errada. Tudo.

As duas meninas haviam ensaiado a coreografia à exaustão, cansadas, deixaram-se cair na cama ainda acompanhando no tablet o clipe do Chimera Dance Cover. Os vídeos da música conhecida como K-pop, o pop coreano, rolavam na TV instalada no típico quarto de adolescente, grupos com nomes como Block B, Wide Vision, SHINee, 2NE1, Winlock Dance Crew, D.I.V.A., Tiny G, B2, Sun Mi, além do inimitável Psy.
― Zica monstra, amiga, zica monstra. Desculpa falar, mas esse mino tem a maior cara de encrenca.
― Por quê? Só porque ele é pobre? Qual é, Sandrinha, se for assim nós também não somos da burguesia...
― Ah, Ceci, a Freguesia não é a mesma coisa que o Capão, aqui é bairro, não é quebrada. Lá onde esse Peri mora, jacaré toma água no canudinho de medo de piranha, fia.
Caía a tarde. A menina admirava o estilo bem próprio de Ceci se vestir edançar, os olhos grandes e amendoados, o rosto moreno rosado, os lábios carnudos, os longos cabelos arrumados em dread locks coloridos. Na verdade, ninguém conseguia evitar um certo despeito diante da beleza de contornos tão definidos quanto suaves da amiga, que lhe parecia uma mistura de Rihanna com Beyoncé. A delícadeza da negritude somada à graça desdenhosa do índio.
― Então, as meninas tão aqui me cobrando, borá lá no Centro Cultural ensaiar?
― Certeza. Vai que o grupo dele também cola lá pra ensaiar...
― Até o nome que escolheram é zoado: Black tipo A!
― San, eu adoro o nome do nosso grupo: Sweet Nightmare, doce pesadelo.