quarta-feira, 30 de julho de 2014

Blecaute (5)


O sonho e a memória têm a mesma desmedida, ambos cabem no curso de uma noite; já os pesadelos, caem sobre nós a qualquer hora e em qualquer lugar. Os dois rapazes giravam o corpo, mas não achavam uma rota de fuga no campo de visão: em volta deles, a pequena multidão famélica cerrava fileiras compactas e ameaçadoras. Havia ali as sobras encardidas do que teriam sido vinte pessoas.
“Comer!”
“Já dei tudo que tinha, acabou”, Bob tentava em vão fixar-se em algum rosto, alguém que fosse o representante daquele aglomerado que parecia rosnar de todas as bocas e nenhuma ao mesmo tempo.
“Mais, quer mais...”, era como aquelas pinturas representando as várias encarnações dos deuses hindus, embora aqui o resultado fosse uma massa informe ao invés de uma figura discernível.
“Não chega perto, afasta, afasta!”, o menino engatilhou a balestra e a apontava para o grupo sem individualizar um alvo. A almôndega humana afastou-se alargando o círculo.
“Ei, ei, pára com isso cara! Tá maluco?! Você pode ferir alguém com esse bagulho, mano”, Bob começou a ficar preocupado com as atitudes do companheiro armado.
“Ah tá, e o que tu acha que eles vão fazer com a gente, manézão?
“Comida, precisamos comer. Levem a gente ao seu acampamento, dêem o que precisamos e nós vamos embora”, um gordão com cara de poucos amigos se destacou do grupo falando como líder.
“Pô, se é só isso, não tem problema. Vamos...”
“Bob, você consegue parar de falar merda um minuto? A gente não vai a lugar nenhum, cara, e quem se aproximar leva prego.”
“Certo, moleque, mas você vai conseguir disparar uma flecha só pra se defender. A chapa vai esquentar pro teu lado se ferir alguém antes de ser pego.”
Olhou incrédulo na direção do “cunhado”, e constatou: estava desarmado.
“Caralho, Bob, cadê a porra do teu facão?!!”
“É... acho que deixei lá perto da bomba d’água. Foda carregar essa parada pra cima e pra baixo...”
O círculo voltou a se fechar em volta deles, lenta, mas continuamente. Um estrondo paralisou o estranho balé de avanços e recuos, causando um rebuliço na passarada escondida na floresta.
“Muito bem, acabou a brincadeira, este foi pro alto, mas a próxima bala eu vou meter nos cornos do imbecil que der o próximo passo”, vindo de trás da roda de molambentos, o pai surgiu de um matagal empunhando uma espingarda de dois canos.
Silêncio.
Longos instantes passaram antes que voltassem os sons característicos da mata.
“Na boa, meu irmão, o problema continua: no máximo vocês derrubam dois de nós. Os que sobrarem jantam cês tudo, melhor dividir o que têm com a gente... escuta, não vou deixar que toquem no garoto.”
“Escuta você, quem tocar no garoto, morre.”


segunda-feira, 21 de julho de 2014

Blecaute (4)



O pior engano é a certeza, as viravoltas do imprevisível espreitam nas cercanias da vida. E, se parece patética a preocupação constante de isolar e prevenir cada pequena minúcia, é porque estas são infindáveis, como a água de um mar que transbordasse, em pequenas quantias mas por toda parte e ao mesmo tempo.
Chegaram ao abrigo fortificado na madrugada de terça feira.
Dormiram nove horas seguidas de pura exaustão. Luz e internet ainda não haviam voltado quando acordaram. Os cinco sentaram nas cadeiras de campanha, dobráveis como a mesa onde foi servida a primeira refeição. Ele distribuiu à mulher e aos filhos os pacotes da ração de exército estocada que poderia sustentá-los pelos próximos dois ou três meses.
“De qualquer maneira, não podemos nos alimentar só com isso.”
“Como assim? Essas gororobas não são balanceadas, e tudo mais?” Bob sofria para abrir a embalagem marrom da MRE, a mítica ração de combate dos marines americanos. A namorada o ajudava derramando cuidadosamente a água pra reação química no aquecedor exotérmico.
“Acontece que esses kits são pensados pra situação de stress, daí os caras atocham sal e tempero flavorizante. É uma carga pesada nos rins de quem vai ficar relativamente inativo como nós. Mesmo em combate, eles não recomendam alimentação exclusiva com a MRE por mais de vinte e um dias.”
“O senhor acha que precisamos ficar aqui enfurnados muito tempo?”
“Bob, imagino o quanto é difícil pra você ficar longe da sua família, mas aqui nós temos que seguir uma estratégia...”
“Pai, ele tá mais perdido que cachorro em tiroteio, nunca fez os nossos acantonamentos, não tem nenhuma habilidade sobrevivencial, zero bush craft.” A menina tocava o dedo na ferida: os próprios filhos, e até a mulher no começo, reclamavam dos constantes períodos de treinamento. Ficou feliz com a ponta de orgulho que transparecia nas palavras da filha.
“Puá!! Esse suco tem gosto de maçã podre, eca!”
“Hmm, meu bem, põe um mel. Tem ali, naquele pote.” A mãe se desdobrava em cuidados com o caçula depois do ataque que sofrera. Ajudou-o com a tampa.
“Prova o frango com feijão. Sugestão do chefe: chicken fajita.”
“Pai, porque tem esse gosto de mofo em tudo?”
“É do processo da conserva, pelo menos não é liofilizada e o aquecedor químico funciona bem. Por um tempo é melhor a gente não cozinhar: a fumaça denunciaria a nossa posição. Precisa ficar claro que segurança total, só temos aqui dentro, será necessário esperar, monitorar, e só fazer saídas planejadas. Pelos próximos dias ainda pode haver gente por aí atrás de comida, depois vai diminuir, esta é uma zona rural.”
No dia seguinte começaram as ações externas, primeiro, foram pequenas excursões exploratórias nas imediações ― só iam os adultos. Não havia ainda uma situação clara na opinião do chefe do grupo, ou seja, o pai. Bob ficou indignado com a rígida hierarquia da família: o pai era o comandante; a mãe, a capitã; a namorada, sargenta; o irmãozinho, soldado... e ele, a mosca do cocô do cavalo do bandido. Sequer havia um cachorro que pudesse chutar.
Mas aí vieram as “missões” mais importantes.
Dividiram-se em duas equipes de dois integrantes cada, a mãe ficaria na base, controlando as operações a partir do bunker, acionando-os de cinco em cinco minutos pelo talk about. Palavra-chave: João de barro, só João, sinal de problemas. O pai e a filha desceriam até à chácara para verificar o estado da roça, colher o que pudessem no pomar e recolher o que ainda houvesse de útil na casa. Pelo lado oposto da encosta, Bob e o caçula iriam à nascente próxima com a missão de desobstruir a bomba d’água.
Por decisão do alto comando e estado maior, os dois namorados não iriam juntos em missões externas. Mais um sapo que o rapaz teve de engolir: na hora da saída, entregaram-lhe um facão de mato, mas a balestra Panzer ficou com o menino. Coronha de polímero, quatro flechas de dezoito polegadas (com ponta) e aljava acoplada. Do alto dos seus dezoito anos, não se conformava que não o deixassem nem chegar perto das facas de aço carbono, e ainda lhe pespegassem como superior um pirralho de onze!
“Cara, não conhecia direito teus pais... cheios de regras, né? Achei que a sua irmã exagerava um pouquinho nas histórias, mas é tudo verdade.”
“O que é que é verdade, Bob?”
“Bem, essa coisa de... sei lá, ordens, senhas, cronometrar tudo que faz...”
“Olha bem isso”, o menino levantou a blusa expondo o ferimento no abdome, “Você acha que eles tão exagerando? Véio, tá todo mundo muito pirado.”
“Certo. Ói lá, chegamos.”
“Deixa que eu sei o que é, são algas que entopem o comando de válvulas do carneiro hidráulico. Enquanto eu limpo, dá uma vigiada em volta.”
“Ok, parece que aqui todo mundo é fã do Bear Grylls...”
“Aí mano, você tem aí pendurado no pescoço um apito e duas pederneiras, você sabe a diferença, né?”
E assim, tendo que chupar mais essa manga sem tirar os fiapos, lá se foi o Bob dar um rolê nas adjacências só pra fingir que fazia alguma coisa. Não que esperasse encontrar uma loja de conveniências aberta. Se pelo menos pudesse levar a balestra, ainda dava pra caçar um que outro preá.
O garoto rapidamente desincumbiu sua tarefa, preparava-se para ir procurar o companheiro, quando soou o rádio.
“Alô, base, câmbio.”
“Câmbio, grupo dois, João de barro, câmbio.”
“Ok, câmbio, desligo.”
Deu de cara com uma cena apavorante: o Bob abria a mochila, tirava alguma coisa lá de dentro e entregava pra uma mulher molambenta e curvada como um tronco seco. A mendiga sumiu como um espectro na mata densa da montanha. Puxou o cunhado paspalho dali e também deram o fora quase correndo.
“Tá louco, bro?! Que é que cê tava fazendo, maluco?”
“Calma, meu, não precisa gritar comigo. Só dei umas barras de cereal pra coitada. Nós temos bastante...”
“Cala a boca, não, não acredito que você fez uma merda dessas...”
“Pô, mano, não é porque a situação tá pastosa, que a gente não vai ajudar quem tá passando fome!”
“Pois agora ela não passa fome, mas nós estamos passando peri...”
Antes que conseguissem acionar o rádio, ou mesmo engatilhar a besta, viram-se cercados por um bando de maltrapilhos.



sábado, 12 de julho de 2014

Blecaute (3)


O ferimento foi superficial, mas não a cicatriz.
Pelo menos, dali em diante ficou claro que desconfiar de tudo e todos era a receita vencedora a fim de conservar a pele. As pessoas não estavam se guiando pelos seus programas habituais de conduta e reação, amigos e conhecidos da vida inteira tornavam-se imprevisíveis como qualquer estranho da rua.
Os paranóicos, os eremitas, os fóbicos sociais, estavam um passo à frente, mas nada garantia a ninguém o cobiçado prêmio de sobrar pra contar a história.
Enquanto pedalava na estradinha de terra iluminada pelo farol do seu capacete, pensou no poder devastador das palavras: paranóico. Durante anos lutou com a etiqueta fácil colada no lombo pelos seus detratores, em vão repetiu mil vezes nas redes sociais que um sobrevivencialista não é um maluco das teorias conspiratórias, dos apocalipses espetaculares.
Pelo simples fato de que não há uma narrativa unificadora, o mundo não precisa acabar em apoteoses hi-tech de efeitos especiais, nosso cotidiano apenas deteriora imperceptivelmente na sua cantilena brutal e diária de tragédias. Grandes e pequenas.
Nada acontece porque estamos anestesiados por sonhos de consumo. E aconteceu de ele, e sua família por extensão, estarem preparados. O passado já saiu das nossas mãos, é lenha queimada. O futuro será o que fizermos dele, é promessa de fogo. Todas as escolhas da vida prática se dão entre pensamentos, pois será sempre tarde demais pra escolher sobre os acontecimentos.
Este é o motivo primeiro e último da preparação.
Sinalizou para os retardatários passarem à sua frente. Parou. Consultou o seu relógio Suunto Ambit. Estavam no local exato.
“Vai mesmo fazer...?”
“Óbvio que vou. É a única via de acesso pra carros.”
“Quer ajuda?”
“Não precisa. Leva as crianças pro morro, vou ajeitar os explosivos.”
Fixou as cargas com fita adesiva nas pilastras da ponte rústica, ativou o timer e se afastou rapidamente. Dispunha de três minutos.
“Desçam das bikes, abriguem-se atrás do tronco de uma árvore grande. Estilhaços podem vir da direção a oito horas deste ponto.”
“Mãe, posso ir na curva com o Bob ver a explosão?”
“Seu pai já não falou dos estilhaços? Agora tapa os ouvidos, menina, que o deslocamento de ar é bruto.”
Com efeito, dali a pouco foram sacudidos por um tremor que ecoou nos vales ao redor. Os pássaros saíram em revoada assustados na mata, depois, novamente o silêncio e a noite fria.
Chegaram extenuados ao sítio Recanto da Encosta, que, contrariando o nome, ficava no alto de uma montanha nas fraldas da Mantiqueira. A porteira escancarada, cachorros sumidos, a criação de gansos, cabras, coelhos e galinhas roubada. Previsível.
Tomaram o rumo norte pela trilha que saía por trás da horta, também ela rapinada. Doía pensar que tamanho estrago havia sido provavelmente obra dos vizinhos. Assustava pensar que a casa, assestada no pequeno platô antes do topo do morro, estivesse ocupada por invasores hostis. Mas não era pra lá que se dirigiam.
“Porque o senhor está jogando esses bagulho?”
“Bob, isto aqui são ‘bombas de sementes’, combinados de germinação dos frutos, folhas e legumes necessários nos próximos meses: espinafre, agrião, abóbora, quiabo, jiló, nabos, beterrabas e os sempre ligeiros rabanetes.”
“Acha que vai durar tanto... meses?”
“Acho só que não sei. Mas não quero ser pego de calça curta. Quem rapelou nossa chácara não vai voltar pra cultivar. Na próxima chuva isso já começa a brotar, e a nossa reserva dá justo em cima.”
“A gente consegue viver do que a terra dá?”
“Sustentabilidade, garoto, temos uma mina d’água no terreno. Podemos complementar com caça, quem sabe, achar algumas cabras e galinhas perdidas no mato e recomeçar uma criação. O importante é resistir aos primeiros dias de balbúrdia.”
Como antevira, a queda generalizada da energia elétrica paralisou também a governança local e mundial. As agências públicas veiculavam pouquíssimas informações confiáveis, e, quando o faziam, competiam entre si na inépcia e falta de coordenação. Por exemplo, a clássica recomendação “fiquem calmos, evitem deixar as suas casas”, resultou no extremo oposto.
Uma sucessão de erros macabros: como a maioria das pessoas não estoca alimentos em casa, a população correu a saquear os mercados; colocar exército e polícia nas ruas só serviu pra expor imagens de saqueadores armados e fardados sem uma linha coerente de comando.
Sua grande obra, o Recanto da Encosta. Horta orgânica, pomar, oficina, placas de captação fotoelétrica, cantinho da compostagem, de tudo isso abriria mão naquele momento pela verdadeira jóia da coroa: o bunker enterrado no topo da montanha. Lá estariam seguros, protegidos sob grossas paredes de concreto, além das duas portas blindadas com chapas de aço balístico reforçadas por barras anti-arrombamento feitas de mola de caminhão.
Abaixo um esboço do Ninho do João de Barro:


domingo, 6 de julho de 2014

Blecaute (2)


O ódio é o irmão mais velho do amor.
Sempre pregara que, sob condições de exceção, prevaleceria o primogênito sobre o caçula, mas só nos mais turvos cenários distópicos imaginara a guerra de todos contra todos que testemunhava abismado.
Pode ser que tenham existido conflitos que mobilizaram somente a destruição “necessária”, por exemplo, o mínimo de agressividade implicado na defesa de si mesmo. O que se via era uma explosão de violência ilimitada, racismo, xenofobia, assassinatos aleatórios, estupros, destruição de monumentos e habitações, tortura, assaltos e violações de todo tipo.
Um Carnaval do Mal. Fora de época e de controle.
Afetos de ódio extremamente potentes se desencadeavam materializando a fúria indiscriminada de um dragão de sete bilhões de cabeças. O blecaute atingira todo o planeta, e ninguém, na internet congestionada, sabia explicar a razão de tantos sistemas independentes caírem ao mesmo tempo em todos os lugares.
Passadas cinco horas sem luz, caiu a internet. Os celulares já estavam mudos a essa altura. No breaks, baterias e geradores responsáveis pelos backbones dos grandes servidores foram rapidamente consumidos pelo estado de hiperconectividade que seguiu imediatamente ao apagão.
A desorientação, por incrível que pareça, piorou ante a falta de transparência dos exércitos e das instituições de defesa: naquela emergência global, os militares pareciam mais preocupados em proteger armas e instalações nucleares do que em atender a população aflita.
Uma segunda feira que escoava modorrenta e trabalhosa como as outras, até quinze minutos depois das três da tarde. O que teria causado aquilo? Algum vírus de redes de geração e distribuição de energia? Uma tempestade solar?
Aconselhou o namorado da filha a desligar o telefone para poupar a bateria, iam necessitar do GPS para achar a trilha no escuro. Instintivamente, consultou o velocímetro: faltavam os derradeiros quilômetros que os separavam da chácara, a maioria deles numa estrada de terra que subia acentuadamente na parte final.
“Quanto ainda falta?”
“Treze. Dá uma boa golada no seu squeeze, você tá bem cansado... mas não podemos parar agora, no nosso sítio estaremos em segurança.”
“Pai...”
“Que foi?”
“As pessoas são... assim?!”
“Bom, elas ficam assim nas grandes calamidades...”
“Mas é que, não entendo...”
“Você sempre me ouviu dizer que existem apenas duas categorias de indivíduos, os que são maus e os que são muito maus...”
“... mas nós chegamos a um acordo e chamamos os maus de bons, e os muito maus de maus. Eu sei.”
“Me desculpe.”
“Pelo quê?”
“Por ter trazido você pra este mundo. Você merecia outra coisa.”
O menino não compreendia. Onze anos só. Não era uma boa idade pra rasgar os véus da ilusão e ser apresentado de forma tão crua à crueldade, ao medo e à estupidez que emergem no ser humano quando as instituições portadoras do sentido derretem.
Não compreendia, sobretudo, a gratuidade.
Aconteceu quando saíam de casa. Ele escutou um assobio, parou de pedalar pra ver quem chamava. Olhou pra trás e viu um rapaz magro, de cabeça baixa, usando uma camiseta surrada e um boné que lhe cobria os olhos.
Quando viu a faca na mão, o desconhecido já estava a um metro. O garoto tentou sair com a bicicleta, virou-se de lado rapidamente, e sentiu uma ardência terrível na barriga. Como uma ferida mergulhada na salmoura.
Viu a faca cair no chão: era de cozinha, daquelas pequenas, serrilhadas. O estranho não tentou roubar nada, nem mesmo a bicicleta. Só queria machucá-lo.
Olhou nos olhos do agressor, não havia dor, não havia raiva.