domingo, 11 de dezembro de 2016

Super K (5)



“Boa tarde, sou a Dra. Ana Cecília Schwank, estou aqui para...”
“Sei quem você é, e o que faz. Sou o Orlando, tenho tanto medo de você que mal consigo respirar.”
“Nossa, não precisa temer nada, por favor, fique confortável. Esta é uma entrevista de recrutamento para uma pesquisa totalmente voluntária e...”
“Há tanta diferença assim entre um interrogatório médico e um policial? Tenho minhas dúvidas, doutora.”
“Bem, Orlando Silva Luís, você foi condenado à pena de morte e aguarda na fila de execução. Confessou o crime, não se defendeu, nem pediu nenhum tipo de recurso, tentou o suicídio diversas vezes sob custódia. Recusa alimentação e visitas, seu relatório admissional do presídio indica depressão severa.”
“Cometi o crime mais indesculpável de todos, matei meus próprios pais. Sabe, tinha grana pra transformar a condenação à morte em prisão perpétua. Tente adivinhar por que não fiz isso.”
“Realmente você me pegou, não faço a mínima idéia.”
“Pra poder deixar alguma coisa aos meus irmãos, eles perderam numa noite só, o pai, a mãe, e o irmão mais velho. Dinheiro pode comprar algum conforto nesse mundo de merda em que eles ficaram largados.”
“Já que estamos falando nisso, é uma coisa incompreensível a sua atitude: você era um analista de sistemas brilhante, sem antecedentes de violência, tinha uma carreira promissora, estava em vias de se tornar um... de nós. Por que jogou tudo fora, o que os seus pais lhe fizeram de tão ruim?”
“Doutora, pela sua aparência, deduzo que já nasceu na casta dos privilegiados, mas você não é uma riquinha qualquer: na sua carreira colaboraram o berço e o mérito. Assim como meu eu antigo, você tem fé no sistema, afinal, há um funil estreito de progressão social baseado no esforço e no talento individuais. Correto?”
“Certo. Veja, pobres e ricos recebem a mesma educação gratuita e de boa qualidade, os melhores se destacam e obtêm vantagens. O que há de errado nisso?”
“Pois é, o problema é que o diabo mora nos detalhes, nos pequenos detalhes que demorei tanto a entender. Como você, engoli a balela de que me bastaria crescer na profissão e cavar meu lugar ao sol, mas havia o lado sombrio da engrenagem: o preço do ingresso era bem mais caro. E sórdido.”
“Como assim? Aonde você quer chegar?”
“Há uma pequena taxa de adesão que as famílias pobres devem pagar à comunidade para seus filhos entrarem no rol dos afluentes. Uma ninharia. Procure se informar sobre o serviço das vans laranja, se ainda não o conhece, verá que andou perdendo tempo em termos de diversão. É verdade, os pobres são educados porque as inovações surgem dos lugares mais inesperados, mas eles pagam um imposto bem maior que o seu talento para se tornarem abastados.”
“Estamos nos desviando do objetivo desta entrevista. Devo concluir que não está interessado em participar do teste de uma molécula que poderia aliviar seu sofrimento psíquico?”
“Pelo contrário, estou muito interessado em tomar uns shots de uma droga que tem a virtude de dar um bom barato e a vantagem colateral de retirar das mãos do Estado o prazer de acabar com a minha vida.”
“Mas não é nada disso, asseguro-lhe que os testes são em ambiente controlado e dispomos de toda a infraestrutura pra...”
“Poupe a conversa mole, doutora, tá na boca do povo: esse tal de Super K que vocês estão estudando mata mais do que cura. Aqui na cadeia, descobri o que é a vida de vocês, a prisão perpétua é como a eternidade biológica: um suceder de dias tristes e sem milagres. Alguns, como você, agarram-se a uma carreira, uma espécie de missão, a maioria se distrai mesmo é abusando dos mais fracos. Percebo que realmente ignora o que estou falando, então, faça aquilo que a sua qualificação indica. Pesquise, procure saber.”
“Você precisa preencher estes questionários e registrar sua aceitação voluntária na câmera.”
“Não se preocupe, vou assinar tudinho, e vou fazer isso pra morrer despercebido nas suas estatísticas, ocultar-me no silêncio que transforma as pessoas em coisas, porque agora que me tornei um de vocês, estou sozinho no meio da estrada, sou uma matilha de sentimentos ferozes e contrários, uma casa à espera de ser esvaziada.”


domingo, 4 de dezembro de 2016

Super K (4)



Por um curto período quando comecei a enricar, fui assediado por pensamentos intrusivos que quase me escapavam da boca ― eram as idéias-berro ―, quando descia no ponto final do trem e voltava para casa pelos becos da favela, a cabeça punha-se a gritar de forma tão veemente que chegava a temer que as palavras saíssem pelos olhos. ‘Vocês estão vendo, imbecis? Sabem como se vira rico? É só aprender a extrair o ouro escondido na burrice do pobre. Vocês entenderam? Estão vendo eu aqui, andando no meio de vocês?, pois bem, daqui a pouco vou vir de helicóptero cagar em cima da cabeça dos otários. Seus otários!’ Era horripilante ouvir-me culpando as vítimas, desprezando-as, mesmo que em pensamento.
Entretanto, nunca me atrevi a dar livre curso aos rompantes de fúria, sou antes de tudo um rapaz cordato e educado. Tinha fé no sistema. Eu, Orlando, vim ao mundo com uma habilidade inata para decifrar códigos, nada mais natural que ascendesse socialmente para a casta dos eleitos, com sorte, ainda conseguiria trazer a família junto. Não que fosse cego para as injustiças, percebi de imediato a grande massa de excluídos amontoados em extensas Trenchtowns com cara de cenário Mad Max que circunda os resorts dos ricos. Nestes, o seleto grupo dos imortais curte a sua aisance em sofisticados bairros-conceito cujo urbanismo fluido combina os ambientes de floresta, jardim, clube e shopping center. A chave do paraíso era (ao menos assim acreditava) o mérito pessoal, a desigualdade então parecia-me feia, mas não injustificável.
Tudo ia bem, não fosse aquela conversa esquisita com o meu amigo Carlinhos. Dali em diante não pude mais sossegar até descobrir o segredo das vans laranja; com o acesso que a minha posição me franqueava, foi relativamente fácil solucionar o mistério. Na verdade, se mistério havia, talvez eu fosse um os poucos a estar por fora: era moeda corrente, tanto do lado de fora, como dentro da redoma dos endinheirados. Um segredinho sujo que mantinha aquela ordem de coisas em pé. Os metidos a bacanas surgiram pra mim numa insuportável luz negra: a vida eterna deles era uma gaiola de ouro, um pântano infinito de tédio e depressão no qual se afundariam, não fosse o requinte de exploração que ainda tinham a cara de pau de redobrar pra cima do povão.
Comprei a arma do Carlinhos. Havia contas urgentes a acertar.
Parei no bar da esquina, o dono me estranhou por ali tomando pinga e pagando rodada pra bebum. Não havia mais volta. Cambaleei na direção de casa, meus irmãos e irmãs menores não estavam, festa-de-sei-lá-o-quê. Só os velhos, dormindo. Diante da porta, perplexo: não consigo enfiar a chave na fechadura. Ganho impulso, derrubo o madeirite que faz as vezes de porta. Caio de pé no tapete da soleira. Ao cruzar a cozinha derrubo o maldito tacho fazendo um barulho dos diabos. Que se dane, melhor que acordem. Paro pra escutar, ninguém se mexe no quarto. Vou até eles, a dupla de monstros que me botou no mundo. Abro a porta, minha mãe se remexe na cama. Um, dois, três tiros no meu pai. Nem acorda, geme por alguns segundos. A cama se tingindo de sangue.
“Meu filho, que horror, por quê?”
“Por quê, mãe, você tem a coragem de me perguntar por quê?”
“Seus olhos, você bebeu? Como pode me olhar com tanto ódio?”
“E você, mãe? Como pode me olhar depois do que você e... ele fizeram? Acharam que eu nunca ia descobrir? Ou talvez tenham pensado que ia aceitar, afinal a vida é assim mesmo, né?”
“Abaixe essa arma, filho, me escute. Você está pondo tudo a perder, nós fizemos tantos sacrifícios por você, pra que pudesse...”
“Sim, vocês fizeram muito sacrifícios, mas esse sacrifícios eu chamo de barbaridade, de crime. Vocês ofereceram meus irmãos para aqueles... aqueles monstros da cidade rica! Mãe, onde estava com a cabeça? Achou que eu ia aceitar isso e simplesmente seguir em frente?!”
“Filho, essa é uma coisa que acontece já muito antes de você nascer! A gente não tinha escolha, ou acha que pra virar rico basta ter um talento? Eles pedem mais.”
“Muito bem, a senhora disse que não tinha escolha. Mas eu tinha! Devia ter me perguntado se eu aceitava os termos do negócio. Tenho cara de quem gosta de saber que aqueles malditos abusam dos meus irmãos?”
“A vida nem sempre é como a gente espera.”
“A morte também não, mãe!”
Dois tiros na cabeça dela. Na hora de estourar meus próprios miolos, a arma travou.